Eu queria um ano novo, mas novo mesmo. Como aquele poema de Sophia sobre o 25 de Abril que, não sendo tão famoso como o d’ “aquela “madrugada tão esperada” diz tudo sobre renovação: “Como casa limpa / como chão varrido / como porta aberta / como puro início / como um tempo novo / sem mancha nem vício”.
Um ano em que celebramos 50 décadas de democracia e que começa com uma campanha eleitoral deveria ser uma oportunidade de renovarmos os votos com o nosso poder de decisão e participação, em prol de um país mais justo, mais coeso, menos desigual. Mas a julgar pela pré-campanha desinteressante, centrada em possíveis coligações pós-eleitorais, em soundbytes e nas tricas entre um presidente hiperativo que não sabe controlar o verbo e um primeiro-ministro amuado, temo que discutir projetos, programas e política seja a última das prioridades (até porque os média têm pouco interesse nisso).
Um ano que começa com a sensação de fim de mundo, acompanhando ao minuto o massacre hediondo do povo da Palestina, as mortes de crianças (como se as suas vidas valessem menos do que a das nossas), as mortes dos jornalistas que corajosamente se recusam a parar de testemunhar e denunciar a matança, as mortes de funcionários da ONU e de organizações humanitárias, que tentam sem sucesso levar algum auxílio a um território votado ao desamparo absoluto. É chocante que tudo isto esteja a acontecer no nosso tempo, no nosso turno, em pleno 2024, sobretudo porque os EUA (suposto bastião das virtudes das democracias ocidentais) continuam a apoiar e a patrocinar a chacina, como se Israel merecesse uma inimputabilidade eterna.
Um ano que certamente será mais quente que o anterior, mesmo que esse já tenha sido muito quente. Já que é expectável que a temperatura aumente progressivamente, com todo o descalabro ambiental que nos recusamos a frear. Sobranceiros que somos, os privilegiados do mundo, ao manter tudo como está, serenando as consciências ao consumir o greenwashing que nos vendem, votando em líderes que nada fazem para reverter a lógica suicida em cima da qual tudo gira, ano após ano. Um ano novo com velhos hábitos não é novo, assim como não são os alertas, os avisos e as catástrofes naturais que vão sendo cada vez mais extremadas e frequentes.
Eu queria um ano mesmo novo e, por isso, não contem que venha para aqui dizer que vou fazer mais exercício, que vou comer comida mais saudável, que vou passar menos tempo nas redes sociais, que vou tentar ser uma pessoa melhor, mais produtiva no trabalho, mais focada no que interessa e todas essas coisas pseudo-bem-intencionadas. Não contem que caia nos clichés esotéricos da atração, da abundância e da gratidão, para começar o ano abençoada pela positividade tóxica do privilégio e da frivolidade. Pois para que o ano seja novo, novo mesmo, temos de deixar os lugares-comuns, temos de renovar o olhar e inovar no léxico e isso implica começar dizendo o óbvio: o ano só é novo se fizermos diferente!

