Pedro Bacelar de Vasconcelos

Passámos por cá...

Outro dia, no âmbito de uma conferência promovida pela Associação de Estudantes da Escola Secundária Garcia de Orta, no Porto, precisei de explicar aos jovens que nos escutavam que a minha geração cresceu à sombra da cultura cosmopolita que marcou os anos sessenta, do Movimento pelos Direitos Cívicos, na América do Norte, à Revolta Estudantil de Maio de 1968, na Europa.

Mas foi na luta contra a ditadura salazarista e a Guerra Colonial, contra o medo e a hipocrisia dos que se resignavam às arbitrariedades do regime, que se construíram as causas e os valores que marcaram a minha geração. Criticar o Governo ou afirmar o direito à autodeterminação dos povos das colónias era proibido e punido como um crime que podia levar à prisão, ao desemprego, à morte ou ao exílio. Foram esses mesmos valores que inspiraram a generalizada adesão popular ao 25 de Abril de 1974 e transformaram um mero golpe militar na revolução democrática libertadora. Com a liberdade viria um novo estilo de convivência, a aprendizagem de novos valores como o pluralismo, a alternância, o confronto de ideias, o debate como método para superar dissidências e resolver conflitos. E com a cultura da liberdade e da democracia formou-se também a consciência de direitos inerentes a uma representação mais exigente da dignidade humana que a célebre canção de Sérgio Godinho tão bem descreveu: a paz, o pão, a habitação, saúde, educação.

Contudo, cresce hoje pelo Mundo um perigoso desapego pela liberdade e pela igualdade aqui conquistadas há pouco mais de quatro décadas. Em nome da luta contra o terrorismo, procura-se justificar, de novo, o recurso à tortura. A manipulação dos dados pessoais tornou-se um negócio privado que orienta as preferências dos consumidores e condiciona as opções eleitorais dos cidadãos. Insensivelmente, a precariedade contamina todas as dimensões da vida social. O último filme de Ken Loach, "Passámos por cá" (Sorry, we missed you), ilustra tragicamente a ruína do trabalho dependente, outrora protegido pelas conquistas sindicais da contratação coletiva e da justa causa de despedimento, e agora travestido na miragem do empreendedorismo de sucesso que cedo se revela um pesadelo. Por fim, reconfigura-se o discurso político ao agrado da volatilidade dos mercados financeiros e os eleitos incapazes de formular alternativas substituem os argumentos que lhes faltam por uma insultuosa agressividade.

Por um triz, escapamos em 2015 a este triste destino que os governantes da "troika" nos tentaram impor. Todavia, o risco persiste. Por isso, há que prosseguir o caminho então iniciado, com redobrada determinação.

Deputado e professor de Direito Constitucional

Pedro Carlos Bacelar de Vasconcelos