Cultura

Municipalização da cultura é "um problema de ricos"?

Debate “Municipalização da Cultura?” João Silva / Global Imagens

Dez cidades reuniram-se à mesma hora para discutir competências das câmaras. Sem financiamento das autarquias não haveria cultura fora das grandes cidades.

Se não fosse o investimento municipal na cultura, não haveria cultura fora de Lisboa e do Porto. Este é o principal consenso que resulta de quatro dos dez debates simultâneos sobre "municipalização da cultura", que a associação Acesso Cultura promoveu na terça-feira à tarde em dez cidades portuguesas (Porto, Lisboa, Famalicão, Évora, Torres Novas, Faro, Funchal, Castelo Branco, Ponta Delgada e Angra do Heroísmo), e aos quais o JN assistiu.

A reflexão alargada sobre o financiamento, o funcionamento e a autonomia criativa das estruturas culturais foi precipitada por um artigo de opinião publicado, em outubro, na Imprensa, pelo historiador Rui Matoso (presente no debate de Lisboa), em que o autor alertava para a "instrumentalização do fenómeno cultural na engrenagem do dispositivo municipal". E acrescentava: "Observando e escutando o que se passa nos municípios, fica-se com a ideia de que os presidentes de Câmara e vereadores são como príncipes da cultura e cidadãos seus subalternos".

Foi sobre estratégias e novos caminhos para o cumprimento efetivo daquilo que está consagrado na Constituição - o direito fundamental à cultura plural e livre -, que mais de quatro dezenas de agentes culturais discutiram. Numa sucessão de perguntas que inevitavelmente ficaram no ar, surgiu uma nova questão: Será a municipalização da cultura um problema de ricos? No debate do Porto, a gestora cultural Vânia Rodrigues partilhou a sua opinião. "Em muitos territórios não há praticamente nada. A municipalização é um problema de ricos, surge quando as câmaras fazem muito."

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Se é certo que nenhum debate morre à partida, a ausência de Francisca Carneiro, da Ágora - Cultura e Desporto, empobreceu de forma irremediável a conversa que reuniu ontem, no Museu e Igreja da Misericórdia do Porto, gestores e promotores culturais.

Sem a presença de uma representante autárquica, o caso da alegada prática de censura ocorrida há um par de semanas no Teatro Municipal passou para segundo plano. A exceção pertenceu à gestora cultural Vânia Rodrigues, que lamentou a forma como o atual executivo encara os discursos críticos, considerando-os, por arrastamento, "elogiosos do deserto que foram os mandatos de Rui Rio".

"Não tenho de estar grata à Câmara por fazer o seu papel", afirmou, considerando que é obrigação de quem gere dinheiros municipais a prestação de atividades nos mais variados domínios, incluindo na cultura. Um papel que Gil Ferreira, vereador da Cultura da Câmara de Santa Maria da Feira, diz estar a ser transferido a toda a velocidade do Estado para as autarquias. Não numa lógica de descentralização mas de demissão de responsabilidades. "Se não fossem as autarquias, o acesso à cultura estaria circunscrito a Lisboa e pouco mais", acusou este "regionalista convicto", que tem a seu cargo a gestão de seis milhões de euros, equivalentes a 8,5% do orçamento municipal.

A percentagem está muito acima do que o Estado consagra à cultura, mas fica aquém do registado por algumas autarquias. "Há Câmaras que dizem gastar 20%, mas não desenvolvem nenhuma atividade nessa área", acusou Luís Ferreira, responsável pela programação cultural 23 Milhas.

À frente da programação da estrutura vimaranense Oficina, Fátima Alçada afirmou "não ser a favor nem contra" a municipalização da cultura", preferindo antes reconhecer o seu "papel fundamental". Num debate onde imperou o consenso, com o foco crítico quase sempre apontado para o Estado, um dos poucos focos de discussão aconteceu quando Gil Ferreira defendeu que um mandato é insuficiente para a implementação de uma política cultura numa Autarquia. Sérgio Almeida

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"Em vez de as autarquias terem resposta para a resiliência da diversidade cultural, quiseram controlar e normalizar a vida cultural das cidades", criticou o historiador Rui Matoso, dando o tiro de partida no debate do Museu Bordallo Pinheiro, em Lisboa. O autor do texto que espoletou os dez debates simultâneos sobre a municipalização da cultura lamentou ainda o que diz ser a "instrumentalização da subsidiodependência". E justificou: o financiamento de uma estrutura "corta a liberdade de expressão e de produção cultural".

Já Elisabete Paiva, diretora artística da Materiais Diversos, corroborou. "O facto de os municípios terem um papel ativo, o que é absolutamente necessário na definição de políticas culturais, não significa que a solução deva passar por eles." Para esta responsável, a competência essencial dos executivos camarários é "dar substrato à estrutura para que a cidade civil cresça em independência, em maturidade e em massa crítica". No debate refletiu-se também sobre a "subqualificação das equipas das autarquias face à cultura". Diana Serra Garcia

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Em Famalicão, onde o município domina mais de 90% da agenda cultural, o vereador Leonel Rocha deixou uma garantia: "O município apoia os projetos, não se intromete. Não há "mas". Ou apoia ou não apoia".

A frase foi o ponto de partida para uma mesa redonda na galeria Ala da Frente, onde criadores como Rui Alves Leitão, da associação cultural "Fértil", manifestaram preocupação com a volatilidade inerente à dependência dos municípios.

"Um projeto cultural não se compadece com a mudança de atores políticos a cada quatro anos", justificou, defendendo que não devem ser os funcionários das autarquias a liderar as direções criativas dos espaços, mesmo que esses sejam espaços municipais.

Ainda assim, foi unânime a opinião de que o financiamento municipal é vital para a sobrevivência das respetivas estruturas, sobretudo quando o Orçamento do Estado para a Cultura não chega a 0,5%. Mas é preciso que não haja lugar "à instrumentalização do fenómeno cultural" de que falou o gestor cultural Rui Matoso. Esta instrumentalização deve ser "denunciada" e "evitada". Como?

Uma das soluções foi apontada por Nélson Pereira, chefe de divisão da Cultura da Câmara de Famalicão, que aconselhou os artistas "a trabalharem com várias Câmaras" de modo a reduzirem a dependência de cada uma delas. O trabalho com vários municípios também potencia receitas. A propósito, o artista plástico Alexandre Costa recordou uma exposição em que participou em Inglaterra. De "pocket money" deram-lhe 3000 euros. "Em Portugal, isso dá para um festival", ironizou Rui Leitão.

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"Na nossa histórica democrática, as câmaras municipais foram agentes importantíssimos da ação cultural. Se não tivessem feito os investimentos que fizeram na cultura, o país não seria o mesmo", afirmou ao JN José Russo, responsável do Centro Dramático de Évora (Cendrev). "Isso não pode significar que vamos passar a responsabilidade da ação cultural para as autarquias. Se isso acontecesse, correríamos vários riscos", disse.

Na opinião de Marcial Rodrigues, do Grupo Pro-Évora, "as autarquias têm um papel a desempenhar na questão da realidade cultural. Mas, para isso, terão de ter autarcas conhecedores da história, da cultura, dos territórios e das populações, que desenhem projetos políticos que não subvertam nem condicionam o processos de criação cultural". E acrescentou ainda: "A câmara tem de saber envolver todos os parceiros do município, o que significa ter uma política partilhada, discutida, participada, e não dirigida de cima para baixo".

Semelhante posição é partilhada por Miguel Pedro, diretor da Divisão de Cultura e Património da Câmara de Évora. "A autarquia deve ser um catalisador de todos estes processos. Sem o poder local dificilmente se consegue construir qualquer coisa. A política nunca deve ser posta de lado. Há uma relação direta entre política e cultura e elas reforçam-se mutuamente. O político existe para definir diretrizes, caminhos, visões, objetivos e a partir daí definir coletivamente, com a ajuda de todos, como é que se vão operacionalizar esses grandes objetivos. O caminho traça-se com todos e todos contribuem em igual medida para encontrar estratégias e soluções". Ana Luísa Delgado