Absolvida em primeira e segunda instâncias, a SIC foi agora condenada pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ), por ter violado o direito à imagem de um casal, que abandonou um espetáculo de "stand up comedy", quando o artista João Cunha fez humor com o caso de Josef Fritzl, um austríaco que aprisionou numa cave e violou durante décadas a própria filha, e usou linguagem racista.
Ao abandonarem a plateia do Teatro Mário Viegas (Lisboa), em 18 de janeiro de 2012, os espectadores foram interpelados pelo humorista. E gerou-se uma altercação que foi filmada e seria usada, com uma edição que levou os primeiros a sentirem-se "ridicularizados" e "humilhados", num vídeo promocional da SIC Radical. À entrada, os espectadores tinham sido avisados das filmagens, mas o STJ concluiu que o "consentimento tácito" de quem entrou não abrangia uma altercação como aquela, "extraespetáculo".
A semana passada, em acórdão sobre "recurso de revista excecional", o tribunal condenou a SIC - Sociedade Independente de Comunicação a indemnizar os autores em 40 mil euros, sem prejuízo de esta reclamar metade do valor à produtora do espetáculo, a "Casa do Fumo". Além disso, a ré tem de garantir a "imediata" remoção de conteúdos com imagens e palavras dos autores, no sítio da SIC Radical e noutros, como o YouTube, por onde a cena se espalhou.
Casal interpelado
Os autores assistiam ao espetáculo designado "João Cunha convida", quando este, com gestos de cariz sexual, expressou: "Quem dava jeito aqui era o Fritzl (...) aquele austríaco que fechou os netos lá em baixo na cave e depois pumba, pumba, pumba, anda cá canina, tumba ali, tumba, tumba, chiu, pouco barulho que a tua avó está lá em cima a passar a ferro. Pumba sempre ali nas caninas até, pumba, nem creminho metia", disse, dirigindo-se ainda a alguém do público: "Afinal tu gostas disto.... Ontem estiveste cá com um gajo e hoje vens com a preta".
O uso deste termo com conotação racista e a alusão ao "monstro de Amstetten", como ficou conhecido o austríaco que aprisionou e engravidou a filha sete vezes, entre 1977 e 2008, chocou e levou espectadores a abandonar a sala, mas os autores da ação terão sido os únicos a serem interpelados. E o homem, um técnico oficial de contas que trabalha junto da Assembleia da República e trata das contas do PS, e a empresária que o acompanhava entraram em diálogo com João Cunha, até o humorista rematar: "Eh pá, fechem a porta, por favor, que eu tenho de continuar o espetáculo".
Esta afirmação, para os juízes conselheiros Clara Sottomayor (relatora), Alexandre Reis e Lima Gonçalves (adjuntos), contraria a tese da defesa e corrobora que a altercação foi "uma situação fora do espetáculo", não abrangida pelo "consentimento tácito" à recolha de imagens. A ré também alegava que o casal não se tinha oposto "quando as imagens foram para o ar", mas o tribunal respondeu que eles o fizeram em tempo útil, quando avisados por amigos. E recorreram ao tribunal porque, em 2013, pediram à SIC que eliminasse as imagens e não obtiveram resposta, acrescentou.
"O humorista" satirizava figura do mau comediante
Os tribunais que apreciaram e apuraram os factos deste processo cível deram como provado que o programa "O humorista" - que incluiu vários episódios e foi transmitido na SIC Radical, correspondendo também ao nome artístico de João Cunha - "visava, além do mais, satirizar a figura do "mau comediante" ou do comediante mau profissional". João Cunha, contactado ontem pelo JN, disse que não fazia sentido comentar a condenação da SIC, por ainda desconhecer o acórdão, mas não deixou de a criticar. "Sendo essa a decisão, parece-me gravíssimo. Não tinha ideia de que a censura tinha recebido uma vida extra com os ventos do progressismo", afirmou João Cunha, que era testemunha no processo. A SIC, questionada através da coordenadora do seu Gabinete de Comunicação, remeteu-se ao silêncio.