Cultura

Tiago Moita: "A solidão pode ser uma oportunidade de descoberta"

A ideia inicial para Tiago Moita escrever "Manual da Solidão" remonta a 2010 Direitos reservados

Uma reinterpretação livre e atual do canónico "Livro do Desassossego" é o que Tiago Moita propõe no seu novo título, "Manual da solidão". Poeta e ficcionista, o autor de "O último império" lamenta que os conceitos de solidão e isolamento sejam confundidos com frequência.

"E se o célebre semi-heterónimo de Fernando Pessoa Bernardo Soares ressuscitasse e começasse a desmontar e a desconstruir grande parte de tudo aquilo que escreveu no "Livro do Desassossego", depois de uma série de conversas imaginárias comigo próprio?" Foi esta a ideia-chave de Tiago Moita para escrever "Manual da Solidão", o seu novo livro.

O que traz de novo este "Manual da Solidão" à imensidão de títulos inspirados pela obra de Fernando Pessoa ao longo dos anos?
Quando tive a ideia de escrever este livro em 2010, a minha intenção não era fazer uma análise crítica a todos os ensaios acerca da vida e obra de Fernando Pessoa e dos seus heterónimos, mas antes debruçar-me sobre o seu semi-heterónimo, saber mais acerca desse ajudante de guarda-livros e convidá-lo a deitar no divã da sua consciência e imaginá-lo a desmontar e desconstruir grande parte de tudo aquilo que ele pensou, viveu e escreveu no "Livro do Desassossego", depois de uma série de conversas imaginárias que teve comigo na vida real, como se tivesse regressado do mundo dos mortos para fazer uma espécie de redenção dos seus pensamentos, pecados e remorsos que acumulou ao longo da sua vida.

Crê que, de uma ou outra forma, todos os escritores portugueses contemporâneos carregam a influência de Fernando Pessoa?
José Mário Silva uma vez disse que Fernando Pessoa foi simultaneamente a maior dádiva e a maior maldição da literatura portuguesa do século XX, como se o legado que trouxe para a cultura portuguesa e para a literatura universal fosse uma espécie de eucalipto que secasse todo o golpe de génio ou tentativa de superar o homem que tentou ser "mais plural que o universo" - algo com que eu não concordo de todo e a melhor prova disso foi Herberto Helder que, no meu entender (e creio que de muitos escritores e leitores) foi o maior poeta da literatura portuguesa contemporânea depois de Pessoa. Todavia, a influência de Pessoa acaba por ser transversal a todos os poetas ou aspirantes a poetas que vão beber aos seus versos e pensamentos a forma lírica e psicanalítica como ele descreveu a melancolia, o desalento, a saudade, o pessimismo, o fatalismo e, ao mesmo tempo, a memória daqueles feitos e virtudes que o povo português sempre conservou desde a independência de Portugal e que muitas vezes não tem a mínima noção deles ou simplesmente ignora-os por despeito e indiferença.

Apesar do peso da solidão, bem evidente até no título, pensa que o livro não se resume a isso?
A ideia de solidão presente neste livro não tem a ver com isolamento ou distanciamento do ser humano da sociedade ou do mundo em que vive, mas antes com uma oportunidade de o homem ligar-se a si próprio, à sua verdadeira essência, conhecer-se a fundo e analisar todas as suas virtudes e defeitos, erros e conquistas sem a intromissão de ninguém. É isso que eu pretendo dizer no texto "não dizer nada é falar de muita coisa" quando digo que o maior propósito da solidão é reencontrar a inocência perdida dos homens para além das palavras que escrevem e ouvem nos interregnos do agora, que é o mesmo que abrir a porta a cada pessoa para que reencontre a verdadeira matéria de que é feita e não tenha medo de a revelar ao mundo, como fez no dia em que abriu os olhos e começou a dar os primeiros passos.

Vê Fernando Pessoa como um homem essencialmente só e, por via disso, totalmente focado na criação da sua obra monumental?
Fernando Pessoa procurou fazer a psicanálise do universo através do desconhecimento de si próprio, utilizando a ironia, o paradoxo como se quisesse criar uma espécie de "maiêutica" e revelar tudo o que existe de belo e de vazio na existência humana. Rimbaud foi o primeiro a descobrir "Je est un autre", mas quem conseguiu dialogar com esse "autre" e elegê-lo como seu interlocutor legítimo foi ele. Alguém que mergulhou no seu próprio labirinto e começou a dissecar a sua própria angústia e desassossego até fazer dele o espelho onírico do homem moderno - e pós-moderno, como se constata bem no "Livro do Desassossego" -, explicando através das suas palavras e pensamentos o verdadeiro "Medo de Existir" dos portugueses, muito antes de José Gil.

Passou a olhar para a figura de Fernando Pessoa de modo diferente após ter "encarnado" uma das suas personagens neste livro?
Nesta obra passei a olhar mais para Bernardo Soares enquanto personagem emancipada do seu criador, dotada de uma personalidade e de um pensamento distintos de Fernando Pessoa e é por isso que esta obra é radicalmente diferente de qualquer livro alguma vez escrito sobre Pessoa. Ela pretende revelar um novo Bernardo Soares que foi capaz de sair desse labirinto onírico que é o "Livro do Desassossego", procurou colocar pontos finais em muitas dúvidas e questões que encontrou e colocou a si mesmo durante o seu desassossego e, ao mesmo tempo, foi capaz de formular novas perguntas para os leitores que o lêem.

Que desafios particulares enfrentou durante esse "diálogo" mantido com o autor?
O principal desafio que encontrei durante o processo de criação do "Manual da Solidão" foi conciliar a voz literária de Bernardo Soares com a minha, até chegar a um determinado ponto em que fosse quase impossível distinguir uma da outra. No primeiro capítulo, a voz de Bernardo Soares denota-se com bastante facilidade, apesar de grande parte dos textos serem intertextos invertidos de textos e pensamentos que o semi-heterónimo de Fernando Pessoa apresenta no "Livro do Desassossego", e à medida que o leitor aproxima-se do meio do livro apercebe-se que essa polifonia vai-se esbatendo até dar lugar a uma voz e um pensamento diferente daquele que estávamos habituados a ler, como se Bernardo Soares se transformasse numa personagem completamente diferente daquele que Pessoa tinha idealizado.

"O Livro do Desassossego" é, para si, a obra-chave de Pessoa?
Para um leitor que nunca conheceu o pensamento de Fernando Pessoa, "O Livro do Desassossego" é, sem dúvida, a obra-chave para o conhecer. Estamos a falar de uma obra que Pessoa trabalhou uma vida inteira, sofreu inúmeras transformações até conseguir criar uma obra tão vanguardista e hermética tanto do ponto de vista literário como filosófico. Pessoa já não estava a retratar o mundo modernista da primeira metade do século vXX nem a sentar a Humanidade no divã do seu desassossego, tampouco a fazer uma catarse da sua anima labiríntica, mas a falar do mundo pós-moderno do final do século passado, provando estar cinquenta anos à frente do seu tempo quando falou pela primeira vez com os seus amigos a respeito desta obra. Essas para mim são razões mais do que suficientes para considerar este livro como a obra-chave do nosso grande poeta.

O uso da palavra "Manual" aplicado à solidão é interessante. Significa que requer uma aprendizagem prévia?
Quando Virgílio Ferreira descreveu a solidão com "a relação connosco próprios" estava a entendê-la como uma oportunidade para o Homem ligar-se à sua verdadeira essência, conhecer-se a fundo e analisar todas as suas virtudes e defeitos sem a intromissão de alguém ou do mundo exterior. A palavra "manual" foi colocada aqui como sinónimo de guia, uma espécie de bússola para conduzir o leitor à volta desse mapa onírico de memórias avulsas e pedaços de sabedoria provindos de toda a experiência e introspecção que Bernardo Soares fez à decadência do mundo e à angústia existencial que observou, sentiu e narrou no "Livro do Desassossego", baseada num novo pensamento e numa nova abordagem da realidade do século XXI.

Qual o "gatilho" para a escrita deste livro?
Em 2009 deixei de trabalhar numa IPSS do Porto e ainda estava a escrever o meu romance de estreia "O Último Império". Durante o tempo em que trabalhei naquela instituição passei para o papel pequenos pensamentos e divagações sonâmbulas que escrevi nos intervalos do meu trabalho e cheguei mesmo a pensar em publicá-los com o título "Memórias de um Funcionário". Todavia, a conclusão do meu romance de estreia, o término da leitura do "Livro do Desassossego" de Bernardo Soares e a descoberta de uma espécie de diálogo oculto dentro desses textos em 2010, fez com que nascesse uma pergunta que é possível encontrar na primeira metade da sinopse impressa na contracapa do meu novo livro": "E se o célebre semi-heterónimo de Fernando Pessoa, Bernardo Soares, ressuscitasse e começasse a desmontar e a desconstruir grande parte de tudo aquilo que escreveu no "Livro do Desassossego", depois de uma série de conversas imaginárias comigo próprio?" Essa ideia mexeu de tal maneira comigo que acabei por abandonar o projecto original e criei um novo, baseado nessa pergunta. Quando me debrucei nesse livro, o primeiro título que me surgiu na mente foi "A Segunda Vida de Bernardo Soares", mas não vingou porque entendi que era um título mais adequado para um romance do que para um livro de prosa poética. O título desta obra nasceu no Verão de 2010, quando assisti a um documentário sobre a vida e obra de Virgílio Ferreira na RTP Memória chamado "Retrato à la minuta" e ouvi o autor da "Aparição" a definir a solidão como a "relação connosco próprios" e foi por causa dessa frase que resolvi denominar definitivamente o meu novo livro com "Manual da Solidão", por entender que ele é o melhor guia para o ser humano entender-se consigo mesmo e encontrar a verdadeira humanidade que coabita dentro do seu coração.

Acredita que a obra de autores que viveram noutro tempo seria totalmente diferente se fosse produzida na actualidade?
Toda a obra obedece ao espírito e à cultura do seu tempo. O vislumbre do futuro que um autor, por vezes, capta num dos seus livros nada mais é que uma observação de um novo pensamento e de uma nova linguagem que o presente ainda não foi capaz de entender e aglutinar dentro de si como o futuro. Por vezes é essa falta de observação desse "presente que aspira a ser futuro" que faz com que muitos autores e muitas das suas obras - que julgávamos eternas - acabem esquecidos. Não porque as suas obras perderem qualidade, mas porque a sua linguagem e pensamento não se adaptaram à linguagem e ao pensamento das gerações futuras. Para além do mais, a pressão exercida pelas editoras e pelo "mercado literário" aos autores é muito maior do que aquela que era exercida no princípio do século passado e mesmo muitos antes desse. Se fosse vivo, James Joyce era incapaz de editar hoje o seu "Ulisses" e Dostoiévski o seu "Os irmãos Karamazov", pelas mesma razões que mencionei anteriormente.

O livro aborda a necessidade de procurarmos um novo sentido para a existência humana a partir da solidão. Há uma solidão positiva em que poucos reparam?
Entendo que a humanidade tende a confundir a solidão com o isolamento, da mesma forma que confunde a preguiça com o ócio, que são conceitos completamente diferentes um do outro. E o resultado de tudo isso é o tédio e a ausência de sonho. Julgamo-nos próximos uns dos outros por causa das novas tecnologias de informação e das redes sociais e não nos apercebemos o quão afastados, egoístas e superficiais nos tornámos e achamos tudo isso uma "feliz consequência do progresso científico e tecnológico", quando é precisamente o contrário! Se entendêssemos a solidão como uma oportunidade para descobrirmos a nossa personalidade, por que é que estamos aqui, de onde viemos e para onde vamos e não a confundíssemos com o isolamento - que é uma consequência natural para o ser humano ciente de si mesmo, enquanto criador das suas próprias experiências - certamente não estaríamos na situação em que todos nós nos encontramos e seríamos capazes de rever, sem medos nem preconceitos, o nossos conceitos de progresso, liberdade, bem-estar e qualidade de vida.

Por outro lado, parece existir hoje uma preocupação generalizada e crescente com a solidão, ao ponto de vários governos internacionais já terem criado ministérios específicos.
No dia 13 de Fevereiro saiu uma notícia a respeito da criação de um ministério da solidão no Reino Unido e no Japão, com o propósito de que a solidão "interfere com a produtividade". Mas que solidão é que eles estão a falar? Existem profissões em que a solidão é desejada porque representa uma potencialidade de criatividade como acontece com os publicitários, os autores e mesmo os artistas. Mesmo nas relações humanas precisamos de ter os nossos momentos de solidão para reconectarmos connosco próprios, dialogarmos com os nossos pensamentos, partilharmos as nossas lágrimas com o vazio, mas isso não significa que estejamos completamente "sós". Se negarmos essa solidão de que falo no meu livro "em nome da produtividade" ou outra causa qualquer, poderemos estar, sem querer, a abdicar, um dia, do valor mais importante que o ser humano descobriu e muito lutou - e continua a lutar para o conquistar e preservar - chamado Liberdade.

De que forma a Arte e a Literatura em geral podem atenuar esse risco?
A arte e a literatura são as melhores ferramentas para o Homem conectar-se outra vez com a sua verdadeira essência chamada humanidade. No mundo onde a interação e a globalização são as palavras de ordem é fundamental descobrir um novo pensamento e inaugurar uma nova linguagem capaz de interligar todas as metamorfoses que o mundo está neste momento a passar. Se nascer neste momento um tipo de arte e literatura que observe e aborde a realidade do mundo actual de forma multidimensional e holística, onde cada ser humano, circunstância, objecto ou memória fazem parte de um Todo chamado Vida e esses novos tipos de arte e literatura elevem cada ser humano para um estado mais elevado de consciência, a Cultura passará a ser entendida como uma necessidade tão natural como o simples acto de respirar, ninguém se sentirá uma ilha no meio de um deserto ou de um cidade cheia de gente e entenderão porque é que eu digo no meu livro que a solidão é a relação mais verdadeira que encontramos neste mundo.

Apesar de já ter vários livros de prosa já publicados, vê-se sobretudo como poeta?
Mia Couto uma vez disse que era um poeta que gosta de contar histórias. Pessoalmente vejo-me como alguém que procura revelar novos mundos e novas dimensões na mente das pessoas através da palavra, seja através da prosa ou através da poesia.

Entre a Prosa e a Poesia onde colocaria este "Manual da Solidão"?
O "Manual da Solidão" entra no género da prosa poética porque engloba ambos os traços desses dois géneros literários. Tem uma narrativa mais metafórica e menos directa que a da prosa convencional e uma construção poética textual que foge ao lirismo típico da poesia tradicional. É por isso que esta obra acabou por ser a mais arrojada, por assim dizer, de todas as obras que alguma vez escrevi, porque nela eu acabei por esticar a minha voz literária até ao limite e descobri dimensões e até expressões que desconhecia e, se calhar, era incapaz de encontrar se não tivesse tido a ideia de escrever este livro.

A pandemia, apesar de todas as terríveis consequências, foi um período criativo para si?
Nunca precisei de catástrofes para começar a escrever o que quer que fosse e a pandemia, pela qual todos nós passamos, não foi uma excepção. Foi sobretudo um período de reflexão e de reorganização para mim e, estou certo, para todo o mundo. Uma grande amiga minha disse-me que a pandemia tornou as pessoas mais transparentes, para o pior e para o melhor, e eu concordo com ela. Acho que começámos a ser mais exigentes com as nossas atitudes, os nossos gestos e as nossas escolhas e eu fui um desses exemplos. Depois de pôr em leitura e a escrita em dia e prestar mais atenção às pessoas que precisam de mim, aprendi muito com esse período e com todo o processo criativo que deu origem a todas as obras que escrevi ao longo de 15 anos de vida ao serviço das letras e sinto-me preparado para virar uma página da minha vida e começar um novo ciclo. O meu próximo projecto literário será a prova viva desse momento de viragem.

Sérgio Almeida