Na sua estreia como ficcionista, com o romance "Uma vida assim-assim", Cláudia Araújo Teixeira descreve o quotidiano de um bairro social do Porto e uma dura realidade que não exclui, porém, a humanidade e a entre-ajuda.
Grande parte da vida profissional de Cláudia Araújo Teixeira foi feita em redor dos livros, trabalhando de perto com autores que sempre admirou, mas só agora, vencidos os receios, se aventurou na publicação. O resultado é "Uma vida assim-assim", um romance intenso que escreveu de forma sôfrega durante o confinamento e apenas veio reforçar a certeza que há muito tinha sobre a vontade de fazer da escrita algo mais do que um recurso episódico para desabafos e lamentos.
Este é um romance cheio de vozes. Quem é, afinal, o protagonista de "Uma vida assim-assim"?
O protagonista é, sem dúvida, o Bairro. Cristina Maria seria a protagonista óbvia mas acho que é só uma voz, a voz do Bairro, o friso cronológico da vivência do Bairro, daquelas pessoas.
Se há uma frase que define o livro é a que assegura que "o mundo real é o bairro". Essa autossuficiência aparente de quem vivia no bairro, bem como a distância com que era visto o que se passava fora dos seus limites, devia-se a que motivos? Os bairros, sobretudo nesta época, anos 70, após o 25 de abril, foram criados para albergar, o que eu chamo, os desalojados do progresso, pessoas que, muitas delas, viram as suas casas serem deitadas abaixo, destruídas, para permitir o desenvolvimento da urbe, da cidade, a construção de infraestruturas como os caminhos-de-ferro, etc. Outras porque viviam nas chamadas "ilhas", casas muito pequenas, partilhadas por famílias extensas, pais, avôs, filhos, genros, filhos dos filhos, com casas de banho comunitárias, em áreas exteriores às casas. Na maioria dos casos, estes bairros representavam uma melhoria significativa na qualidade de vida destas pessoas. Nesses aglomerados, com centenas de moradores, existiam ainda escolas, mercados, muitos vendedores ambulantes que abancavam nesses bairros a vender tudo e mais alguma coisa. As casas, muitas vezes, eram também elas pontos de comércio, a vizinha que vendia tripas enfarinhadas, que ela própria fazia, o sapateiro, a costureira, etc. A maioria das pessoas que viviam nos Bairros tinham trabalhos com horários muito longos, saiam de casa ao nascer do dia e só regressavam já o sol ia alto, o comércio do bairro e à volta do bairro, que acontecia igualmente, assim como as práticas de vender fiado, facilitavam esta autossuficiência. A verdade é que só quem era do Bairro comprava no Bairro, seria raro encontrar alguém fora do Bairro a fazer compras ou até saber onde podia comprar cigarros ou arranjar o cabelo, "serviços" que os bairros também tinham. A distância advinha desta vida em circuito fechado, só se saia para trabalhar.
Continua a haver muitas "Cristinas Marias" nos nossos dias?
Continua. Agora, muitas delas, já nem vivem no Bairro, o Bairro estendeu-se, é o subúrbio, continuam a viver a estranheza de viver num sítio que não lhes faz justiça, que as arrasta mas também as enreda, de quem saí mas continua a ficar, as classifica. Curiosamente, conheci recentemente uma "Cristina Maria", alguém que vive num bairro social, que mantém este olhar, ainda que hoje estes bairros já tenham adquirido outros habitantes, outras rotinas, bem diferentes daquelas que o livro retrata.
A escrita do romance decorreu durante a pandemia. Apesar do confinamento, experimentou uma sensação de liberdade ao escrever o livro?
Sem dúvida. Vou confessar, adorei estar confinada, ser reclusa em minha casa, consciente da situação de privilégio que tinha, ter uma casa, ter as pessoas próximas bem de saúde, ter um emprego que me permitia este conforto. No entanto, houve uma coisa, para além da situação de preocupação que todos vivíamos, que me provocou uma certa ansiedade, destabilizou, que foi o silêncio. O silêncio que estamos habituados a ter à noite arrastou-se para o dia, a cidade calou-se e isso assustou-me, tirou-me o sono. A escrita deste livro surge como o ruído que eu precisava para me manter mentalmente sã. Era a minha companhia das noites não dormidas. Comecei a escrever sem o propósito de ver "crescer" um livro, escrevia sofregamente, mas como tudo o que costumamos gostar mais, aconteceu, brotou, apresentou-se à minha "porta", já como uma história, com princípio, meio e fim, e eu gostei muito de o receber.
Quão diferente seria este livro se, em vez de estar situado nas décadas de 1970 e 1980, decorresse na atualidade?
Seria diferente porque as pessoas que moravam, viviam nos bairros eram diferentes das de hoje, as motivações que as levaram aquele sítio eram diferentes das atuais. Havia, ainda, uma sensação de "estreia", estavam a inaugurar uma nova forma de viver, novos edifícios, nova organização social e até novos problemas, muitos deles que surgiram precisamente devido a essa nova forma de coabitar. O tempo piorou a vida, em geral, mas mais ainda de quem vive nos Bairros, as casas que já não eram boas ficaram piores, o desemprego, a precariedade laboral, os problemas ligados ao tráfico de droga, entre outros. No fundo, as peculiaridades de quem vive nestes sítios são as mesmas, talvez os problemas se tenham intensificado ou ficaram menos folclóricos. Em geral o mundo está mais agressivo.
Nos prós e nos contras sobre a vida nos bairros sociais ao longo dos tempos - ou seja, avaliando os ganhos e perdas -, o que seria tentada a escolher?
As estreias, o momento inicial, é sempre para onde pende a minha opção. O cheiro a novo, ainda que intenso, é sempre mais agradável, tentador. Agora, sinto que em relação aos Bairros, há uma sensação de esquecimento. Foram criados com um propósito que, julgo, não foi cumprido e ninguém sabe como o resolver.
Viver num bairro social continua a ser um estigma hoje?
Continua, sem dúvida. As pessoas continuam a virar a cabeça quando alguém dita a sua morada e esta é num bairro. Não o assumimos mas continuamos a surpreender-nos quando alguém que vem de um meio destes consegue ter uma vida dita "normal". A mesma surpresa que temos, que continua a ser notícia, de vermos um cigano, que, muitas vezes, acumula estas duas características, ser cigano e viver num Bairro, a tirar uma licenciatura. Até há o chamado preconceito positivo, quantas vezes vimos políticos em campanha a usar os Bairros com bandeiras, tanto de apoio, como para atacar, acusar as pessoas que aí vivem.
Não tendo nunca vivido num bairro social, como alcançou o nível de detalhe sobre o dia a dia nesses locais que demonstra ao longo do livro?
Este livro não é autobiográfico, não é o meu Bairro, ainda que tenha vivido, conhecido muito bem o Bairro, as pessoas. Porém, acho que esta história, estas pessoas são um traço de uma época, que claramente serão "familiares" de quem a viveu, até algumas vivências. Tenho a certeza que algures no interior alentejano existiu e existe um merceeiro careiro, uma hortaliceira que sega couve galega para a sopa. O detalhe, a memória é algo que pratico diariamente. Gosto muito de observar, de registar tudo o que se passa à minha volta. Em miúda tinha um caderno do Snoopy onde escrevia tudo, era mais do que um diário, era um IMDB da minha vida, das coisas mais simples, "hoje não havia croissants no bar da escola", até à minha crítica ao "Império do Sol", dos atores ao responsável do guarda-roupa. Tenho uma certa obsessão pela memória, não me quero esquecer de nada. Ajudou na escrita, claro, esta prática.
O modelo dos bairros sociais já tem décadas suficientes para que possamos fazer um balanço fundamentado sobre a sua criação. A que conclusões chega?
Que é um modelo falhado. Acredito que a ideia-base era boa, havia, de certeza, a melhor das intenções, era o cumprir de um direito constitucional, o artigo 65.º, "1. Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.". Infelizmente, esta opção de "guetificar" as pessoas, todas elas praticamente com as mesmas características, excluiu-as, não integrou, intensificou aquilo que as colocava à margem. É o próprio modelo de "ascensão social" que falha, há uma falsa ilusão, pois as pessoas têm um nível de escolaridade superior, já não morrem de desnutrição, etc., que todos temos acesso às mesmas oportunidades, mas não temos. As melhores oportunidades continuam de acesso restrito, exclusivo das "elites", daí que quando alguém fura esta lógica continua a causar espanto, a ser notícia, "a realizadora que é de origem cigana", "a advogada que nasceu num bairro problemático". A origem continuar a marcar o ritmo.
O título do livro resume exemplarmente de quem só aspirava a levar uma vida remediada. Vedar os sonhos é uma violência sem par?
É sufocante. Acho que aspirar a levar uma vida assim-assim, sem grande ambição era uma forma de se manterem sãos, não enlouquecerem. Um pouco como não se pode desejar o que não se conhece. É sobrevivência. Há um filme do Hitchcook que retrata muito bem esta sensação, em que o personagem principal tem um acidente de automóvel e vai parar à berma da estrada, deserta, escondido pela vegetação, sem capacidade de se mexer ou articular qualquer palavra, fazer um ruído, vamos assistindo aquela agonia de quem está vivo, à espera de ser salvo. Entretanto, alguém aparece e vê aquele homem, alimenta-nos a esperança da salvação, que se esvaí, no momento em que percebemos que a ambulância o transportou para um hospital mas para uma arca mortuária. Derrotamo-nos, quando vemos a cena final, uma lágrima caí do rosto deste homem enquanto entra na arca. É viver numa espécie de "sem-viver".
Continua a sentir o Porto da mesma maneira, mesmo vivendo há vários anos a 300 quilómetros de distância da sua cidade?
Quanto mais longe estou mais Porto me sinto. Sem o querer, sem o perceber, o sotaque agudiza-se, as dores da cidade continuam a ser as minhas, comparo pessoas e lugares, "sabes Benfica é assim como o Carvalhido.". Gosto muito de Lisboa, vivo muito bem aqui, até porque inconscientemente vivo na zona de Lisboa que mais se parece com o Porto, pelas pessoas, por aquilo que gosto no Porto, a parte castiça. Na verdade, volto a cada quinze dias para aquilo que chamo a minha dose de vitamina P(orto).
Acha que o tão peculiar modo de ser e sentir do Porto e dos portuenses é inaprisionável, ou seja, não há livro que possa capturar essa essência?
É um desafio, seguramente. É muito fácil falar do Porto, das pessoas do Porto arrastando-as para o cliché, o sotaque, os palavrões, a frontalidade, o clima, mas isso é muito pouco. Há toda uma dimensão que é muito difícil de explicar a quem está de fora, uma complexidade simples do portuense. Costumo dizer sobre o Porto, ao contrário de Lisboa, que é mais fácil, está habituada a receber mas também se desapega facilmente, que é como os grandes amores, normalmente não são fáceis de conquistar, nem óbvios, mas quando os conquistámos, são para sempre.
Literariamente falando, quais as obras nas quais o Porto é personagem ou protagonista que sempre viu como referências?
Em relação a livros, nunca fiz uma seleção com base na cidade, ainda que me emociono quando folheio o livro do Alfredo Cunha "Cidade das Pontes". Contudo, se há uma referência para mim do que é o Porto, enquanto protagonista, é o filme, curta-metragem, documentário, do Manoel de Oliveira, O Pintor e a Cidade, que é um retrato também da obra do pintor António Cruz. A imagem da Avenida dos Aliados, o granito, as pessoas descalças, as varinas, os comboios, o tempo que se percebe cinzento e frio.
Os livros têm sido uma presença constante na sua vida, mas, do ponto de vista profissional, sempre esteve habituada a estar do "outro" lado, ou seja, a promover livros que não os seus. Como tem sido a adaptação a esta nova realidade?
Ainda não acho que isto seja a minha realidade, quase que como se estivéssemos a falar de outra pessoa, é estranho. Isto não quer dizer que não sinta um entusiasmo imenso, adoro que as pessoas, que não me conhecem de lado nenhum, tenham lido livro, venham ter comigo e felizmente sem me quererem atirar tomates, só para dizerem que gostaram muito, tem sido muito bom. Quase que me passo para este lado. Mas continuo a gostar do meu papel "normal", de estar do "outro" lado. Olho para os livros e autores que ajudei a promover com um orgulho imenso.
O que lhe ficou desses anos todos na área editorial?
Um respeito enorme pela escrita, pelo ofício. Um respeito que sempre me fez hesitar em me assumir com a minha escrita. Pensava há tanta gente a escrever bem, o que é que eu posso acrescentar, colocava-me uma pressão de qualidade, de exigência. Continuo a achar o mesmo mas perdi a vergonha. Ficaram, também, muitos amigos, pessoas, que é uma coisa que eu gosto muito. E gratidão, sei que é uma palavra muito mal frequentada nos dias que correm, mas é mesmo isso, pude viver muitas coisas, boas e más,, principalmente na época em que comecei, que só nesta área seriam possíveis acontecer e, por isso, sou grata.
Teve oportunidade de, no âmbito das suas ficções, trabalhar com autores como Arturo Pérez-Reverte ou Paul Auster, que sempre admirou. Não é um risco conhecermos pessoalmente os nossos ídolos ou referências, pois podem abalar a imagem intocada que fazemos deles?
Tive um professor que dizia, sabendo o meu gosto pelos livros e os autores, "os autores são para ser lidos não para serem conhecidos" e, talvez, ele tivesse razão. Contudo, eu acho que, no meu caso, o risco compensou, tive a imensa felicidade de conhecer muitos autores que admirava e outros que não conhecia e passei a admirar. Nesses dois casos que refere, a regra do meu professor não se confirmou, dois prodigiosos escritores que acumulavam a bondade, a disponibilidade e o profissionalismo, que tanto me ajudou a ter um bom desempenho naquilo que eram as minhas funções enquanto assessora de imprensa.
À parte esses autores, que outros coloca no seu "altar" literário?
Esta pergunta é muito difícil pois a lista é imensa e vou ficar zangada pois quando ler a entrevista vou dizer, "raios, esqueci-me deste" mas vou destacar os que estão neste momento na minha mesinha de cabeceira, Orhan Pamuk e Julian Barnes.
Era um sonho que vinha adiando há muito, esse de escrever um romance?
Não era um sonho, sempre escrevi muito, sem essa ideia de escrever um livro. O sonho foi fazer muitas daquelas coisas que já fiz na minha vida profissional e na minha vida pessoal, como ter filhos, que nunca imaginei que acontecessem. O Rubem Alves tinha um livro chamado "A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir", que eu adapto "A vida com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir". A minha vida é esse sonho, muitas vezes pesadelo, em que o livro, a escrita faz parte, desse enorme sonho.
Houve tentativas de escrita antes de "Uma vida assim-assim"?
A escrita sempre foi uma evidência, sempre, mas como referi anteriormente sem essa ideia de a materializar num livro mas, felizmente, que aconteceu e, agora, espero que continue a acontecer.
O que significa estrear-se literariamente numa chancela, como a ASA, à qual esteve ligada tantos anos?
Era muito importante para mim, seria um duro golpe que não o publicassem, para mim fazia todo o sentido, era como se tratasse de um ciclo que se encerrava ou que se iniciava. Com uma editora, a Carmen Serrano, que confio, com quem trabalhei muitos anos, com uma equipa que eu conheço e gosto. Felizmente, desde o primeiro momento, meia dúzia de linhas, que abraçaram este livro com muito entusiasmo e senti que mesmo que foi, é, um trabalho de equipa. Cresci com a ASA, sinto-me a amadurecer com "ela".
Já está a trabalhar num sucessor de "Uma vida assim-assim"?
Já, já o tenho escrito na minha cabeça, começa sempre assim, dou-lhe um título, é a primeira coisa, é o rastilho, depois escrevo-o na minha cabeça. Agora só preciso de tempo para ser a escrivã desta história.