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Rui Moreira e o complexo de Mafra

Rui Moreira não gosta do Antigo Egito. Quem acompanha os seus pronunciamentos públicos terá notado a frequência com que expressa repúdio pelo que designa como "obras faraónicas". Esse desgosto tende a agudizar-se em contexto eleitoral. Assim foi em 2017 e em 2021. Com ele, "obras faraónicas", nunca. Em tempos mais recentes, o edil deslocou essa embirração com a arquitetura egípcia para o Plano Nacional de Recuperação e Resiliência. Há cerca de um ano, em entrevista ao JN, profetizava que os fundos europeus que couberam a Portugal para acudir à devastação da pandemia seriam desperdiçados em "obras faraónicas", como acontecera com "as especiarias que vieram das Índias" e com "o ouro do Brasil". Se estas mercadorias ultramarinas apareciam identificadas, o mesmo não acontecia com as "obras faraónicas", que o Presidente da Câmara se dispensava de ilustrar com exemplos locais ou nacionais. Mas, nessa entrevista, prescindiu finalmente do registo esfíngico e apontou uma obra que lhe acudia ao pensamento: o Convento de Mafra, monumento nacional inscrito na lista do património mundial da UNESCO.

Há dias, numa conferência ocorrida na Casa da Música, voltou à carga: "o PRR vai ser mais um complexo de Mafra", augurou. Num primeiro momento, surpreende o desapreço de um monárquico por uma obra tão emblemática da monarquia. Mas logo nos apercebemos de que o "complexo de Mafra" designa, na verdade, a relação complexada de Rui Moreira com o PNRR. É que, noutras ocasiões, ele menciona este plano financiado pela emissão de dívida europeia conjunta como uma "oportunidade única": para a construção da nova ponte sobre o Douro e a extensão da rede de Metro, por exemplo (Novembro de 2021), ou, por inúmeras vezes, para financiar os projetos habitacionais que não se cansa de anunciar mas tarda em materializar.

Creio conhecer a explicação para as diatribes que Rui Moreira tem reservado ao PNRR: nunca o leu. Doutro modo não lhe ocorreria classificar como faraónico o investimento nas redes nacionais de cuidados continuados e paliativos, na habitação digna e no combate à pobreza energética, em respostas sociais para crianças e idosos, na aquisição de frotas de transportes públicos limpos ou na transição digital das empresas e da administração pública, entre tantos outros. E já nem falo dos avultados investimentos no desenvolvimento do tecido industrial e empresarial português, em áreas como a produção de hidrogénio verde, as baterias de lítio ou o setor agroalimentar.

Não, a "bazuca" não servirá para glorificar soberanos ou mediar o trânsito de faraós para a outra vida; servirá, outrossim, para ajudar aqueles que, no tempo dos Kéops, dos Tutankamon e da realeza apreciada por Rui Moreira, teriam alombado com traves, puxado por cordas e carregado pedras para erguer pirâmides e conventos a troco de maus-tratos.

Só posso fazer votos para que Rui Moreira nunca experimente o desgosto de, um dia, ver apodar de faraónicas as obras que cá deixar. O autor deste artigo, seguramente, não o fará.

*Deputado à Assembleia da República (PS), membro da Assembleia Municipal do Porto

Rui Lage