Cultura

Assis Pacheco e as recordações com vista para a infância

O passado desportivo de Fernando Assis Pacheco é o cerne de "Memórias de um craque" Direitos reservados

Fernando Assis Pacheco evoca os primeiros anos de vida em "Memórias de um craque", agora reeditado pela Tinta da China.

O território mítico que é a infância permite todas as abordagens (im)possíveis. mesmo quando a memória já é mais uma construção do que qualquer outra coisa.

Originalmente publicadas na década de 1970, em crónicas semanais no jornal desportivo "Record", e agora reeditadas pela Tinta da China, estas "Memórias de um craque" são uma aproximação feliz de Fernando Assis Pacheco aos seus anos inaugurais, sob uma perspetiva pouco evidente: o seu obscuro passado desportivo.

"O Eusébio marca livres de trinta metros, o Artur Jorge chuta em moinho, o Dinis faz fintas à bandeirola de canto, mas eu fui o maior craque da Rua Guerra Junqueiro e está para nascer um sucessor digno desse título", escreve o autor de "Trabalhos e paixões de Benito Prada" numa das sínteses mais felizes do livro.

Homem feito, Assis Pacheco retorna, através destas 30 crónicas, aos seus anos de meninice em Coimbra, evocando de modo apaixonado as intermináveis jogatanas a que se entregava com ardor máximo em quintais e pelados que, enquanto jogava, adquiriam a majestosidade dos estádios de Wembley ou Maracanã.

Se a passagem do tempo fez agigantar os dotes futebolísticos do cronista, ainda que à custa de muito auto-ironia, o mesmo se passou com a lembrança dos amigos de refrega. Muitas décadas passadas sobre os acontecimentos, Assis Pacheco evoca as idiossincrasias de cada um deles. De uma forma tão precisa que custa até a crer não estarmos na presença de evidentes laivos ficcionais.

De Constantino, o "aldrúbias", assim chamado por lidar mal com a verdade, ao virtuoso Bentes, que a todos impressionava com a sua técnica de remate, as páginas de "Memórias de um craque" estão pejadas de personagens de carne e osso, cada qual carregando dentro de si "o excesso de realidade que confere a aura de ficção a toda a literatura de tipo memorialístico", como escreve no posfácio Manuel António Pina.

Afinal, o futebol é apenas o pretexto de que o autor se serve com mestria para discorrer sobre a humanidade, que tanto pode surgir sob a forma do afeto e do companheirismo, mas também da mais prosaica luta pela sobrevivência, quando um remate mais afoito partia os vidros da vizinhança e obrigava os miúdos a lançarem um "salve-se quem puder" generalizado.

Sérgio Almeida