Quem gosta de livros já terá pensado pelo menos uma vez no assunto: e se fosse possível tirar partido financeiro dessa paixão como leitor profissional?
Figura editorial fortemente instalada em mercados como os anglo-saxónicos, os leitores de manuscritos são uma raridade por cá. E, a avaliar pela contração do setor nos anos recentes, sem sinais de mudança significativa nos próximos tempos.
Nas editoras de menor dimensão, é a própria estrutura interna que, por uma questão de contenção de custos, chama até si a função. O cenário muda nas poucas editoras de porte médio e grande. Quando essas chancelas procuram um parecer sobre um potencial livro a publicar recorrem a leitores externos, na sua maioria profissionais já ligados ao meio, como tradutores, jornalistas, revisores ou até escritores.
"Convém ter a noção de que não é um trabalho idílico: há que ter outras fontes de rendimento", explica Inês Mendes, colaboradora regular do Penguin Random House Grupo Editorial Portugal na análise de manuscritos e pontualmente na revisão e na tradução.
Às verbas baixas pagas pela tarefa (com um valor médio entre 50 a 75 euros) há que somar ainda a pressão do cumprimento apertado de prazos. Lida a obra, o leitor deve escrever de seguida um relatório onde fundamenta a decisão de aprovar ou não a publicação. "A maior responsabilidade que sinto, curiosamente, é para com os autores. Não quero ser injusta, distraída ou pouco cuidadosa com os manuscritos que me dão a ler", assevera Inês Mendes.
"doença" profissional
Tudo somado, a suposta profissão ideal revela-se, afinal, bem menos prazerosa, defende o escritor Nuno Gomes Garcia, que estima "em 90%" a quantidade de "livros maus" sobre os quais tem que dar a sua opinião.
Atualmente a viver em Paris, onde se dedica à consultoria editorial e divulgação literária, o autor de "Zalatune" compara as tarefas a que hoje se dedica à sua anterior profissão de arqueólogo: "Parece ser uma atividade de sonho estar deitado num sofá a ser pago para ler, mas a maior parte das vezes não dá prazer nenhum. Claro que, por vezes, surgem autênticas gemas que acabam por compensar. Não digo que sejam descobertas tão raras como descobrir um sarcófago do século IX enterrado num jardim, mas são descobertas pouco frequentes".
Para Inês Mendes, a descoberta de uma autora compensa todas as desvantagens associadas à profissão. Foi o que aconteceu quando leu "Manual para mulheres de limpeza", da americana Lucia Berlin. "Bastaram-me as primeiras linhas para descobrir uma escrita extraordinariamente bonita, diferente do normal, de uma mulher que escreve como quem desenha", acrescenta a leitora, particularmente atenta "a mulheres , minorias e franjas".
Com a recente popularidade dos romances nórdicos, muitas foram as editoras nacionais que procuraram explorar esse filão, tentando assegurar os direitos de publicação. Como um dos raros tradutores especializado nos idiomas escandinavos, o escritor João Reis costuma ser requisitado com frequência.
É uma tarefa secundária no âmbito do trabalho que faz, mas que não evita que padeça dos mesmos males dos outros leitores. Além das já faladas "pressão e necessidade de ler livros que nem sempre são agradáveis", enfrenta "a responsabilidade de se contribuir para a publicação ou não publicação de uma obra".
A leitura forçada pode ter contraindicações graves. Nuno Gomes Garcia fala mesmo numa "doença" profissional, recordando que, desde que começou a ler manuscritos, o prazer da leitura se "desvaneceu". "É impossível pegar num bom romance e lê-lo como o fazia antes, com total desprendimento. Agora, leio-o com olhar clínico, analisando e julgando cada parágrafo. É uma sensação horrível à qual não consigo escapar", lamenta.