Já está nas salas a primeira longa-metragem de Tiago R. Santos, "Revolta". Com Margarida Vila-Nova, Ricardo Pereira, Teresa Tavares e Cristóvão Campos.
Sem perder a sua identidade de autor, que o tem levado a todo o mundo e a alcançar prémios de grande prestígio, o cinema português tem tentado encontrar outras vias, que o aproxime de um público que se mantém endemicamente afastado. Se, infelizmente, uma boa parte dessas tentativas de fazer filmes "para as pessoas" são desastrosas, apostando na boçalidade e numa linguagem televisiva, tal não é o caso de "Revolta", a mais do que promissora primeira longa-metragem de Tiago R. Santos, argumentista de vários dos últimos filmes de António-Pedro Vasconcelos e que já está nas salas à sua espera. Enquanto lá fora se ouvem gritos de revolta, um casal recebe a visita de dois amigos para um jantar que, entre vários copos de vinho, acaba por revelar segredos há muito escondidos. Se a carne assada estava dura, a "sobremesa" é bastante deliciosa. Uma das personagens diz: "Ainda bem que não perdi este jantar". Não o perca também. O realizador explica-nos porquê.
Em que medida a pandemia influenciou a escrita e a realização do filme?
Influenciou, acima de tudo, a reescrita e a produção. Escrevi a primeira versão há quase uma década e já há alguns anos que o Tino Navarro o tem nas mãos e tentava encontrar as condições necessárias para a sua produção - mas, como tantas vezes acontece, fomos perdendo sucessivos concursos do ICA. Durante esse tempo, e a cada reescrita, ia atualizando o pano de fundo, oferecendo novas características à "Revolta" de acordo com o momento social e político da altura.
Foi então uma coincidência a pandemia e ter finalmente os meios para fazer o filme?
No início de 2020, e já depois de termos a noção de que a pandemia iria ter um efeito dramático nas nossas vidas, o Tino ligou-me convencido de que era o momento certo para a produção do filme. Não só porque a realidade que vivíamos oferecia pertinência e atualidade ao guião, tornando a história urgente, como também nos permitia trabalhar com uma pequena equipa, poucos atores e um único décor, criando uma bolha que nos oferecia uma relativa segurança em relação ao vírus.
Quais as principais dificuldades que encontrou ao perceber que, além de escrever o guião, tinha de ser o principal "capitão" do barco?
Acima de tudo, lidar com a pressão de estar à altura das expectativas - do Tino Navarro, que confiou em mim e acreditou que tinha a capacidade de fazer um bom trabalho; do elenco, a quem eu entreguei quilómetros de texto e que seriam a força física e emocional do projeto; e da equipa técnica, que saiu de casa num momento tão complicado para ajudar um realizador inexperiente a contar a sua história.
Já tinha acompanhado a rodagem de algumas das obras que escreveu, imagino.
Sim, e confirmei que era fundamental estar rodeado pelas pessoas certas - não só ótimos profissionais mas pessoas com quem já tinha partilhado histórias e projetos e criado ligações de amizade. Foi mesmo uma sorte e um privilégio saber que os tinha ao lado para me ajudarem com qualquer hesitação de principiante. Senti-me sempre confortável, mesmo com os que conhecia menos, porque era claro que estávamos todos a trabalhar no mesmo tom e a tocar a mesma melodia.
Como é que decorreram as filmagens?
A maior dificuldade terá sido aquela que é mais comum a produções da nossa dimensão - a falta de tempo. Mas, porque a equipa e o elenco tinham um espírito de união e sacrifício admiráveis, talvez essas condições tenham criado uma energia criativa nervosa e uma tensão e cansaço - filmamos sempre durante a noite - que acabou por servir o filme. Porque espelhava, de certa forma, a ficção que estávamos a filmar. Não sei, honestamente, se o filme seria melhor com mais dinheiro e tempo. Arrisco-me a dizer que não.
Aquela casa é como que a quinta personagem. Como é que a descobriu?
Andámos à procura de apartamentos por Lisboa, como noivos à procura de casa. Quando entrámos naquele que seria o décor do filme, a reação foi imediata e unânime: é aqui. Pelas razões que estão à vista. O espaço é tremendamente cinematográfico, com profundidade e colunas, linha horizontais e verticais, e tinha uma característica que me encantou - a cozinha no piso de cima, à vista de todos, como se fosse um aquário, o que oferecia uma potencialidade cómica e dramática a uma das cenas chave.
Até que ponto aquela casa condicionou o trabalho de encenação e realização?
Tivemos de encaixar o guião naquele espaço e para isso foi fundamental termos uma semana de ensaios no próprio apartamento, o que nos permitiu antever grande parte das movimentações dos atores e também onde colocar a câmara de forma a aproveitarmos a potencialidade visual do espaço - assim como evitar ângulos e lados que me pareciam menos interessantes ou reflexos intrusivos - para conseguirmos fugir a uma monotonia cénica que se poderia instalar pelo facto de estarmos sempre naquela sala.
Há um pouco do Tiago R. Santos em todas as personagens ou há alguma com quem mais se identifique?
Talvez tenha um bocadinho mais de Raquel [Margarida Vila-Nova]. Há um lado cínico e niilista nela com que me identifico. Por outro lado, também me vejo no João [Cristóvão Campos]. Não no seu lado depressivo ou alheado da realidade, mas na certeza de que iremos sobreviver, apesar de todas as dificuldades. Como o Paulo [Ricardo Pereira], também acho que sou um bom tipo, mesmo considerando todos os meus defeitos. E, à semelhança da Cristina [Teresa Tavares], sei muito bem quem é o John Carpenter. São todos meus filhos.
A revolta que se ouve e pressente lá fora é contra o confinamento, contra as condições de vida ou é uma revolta mais genérica, de mudança do mundo?
É a revolta de quem sente que se tornou apenas uma pequena peça de um grande sistema - político e social - que os devora ou ignora. É também a revolta de quem vê o mundo deslizar para território desconhecido, onde as coisas deixaram de ser o que parecem e a própria definição de verdade começa a ser questionada, como se a realidade mesmo à frente dos nossos olhos estivesse aberta a discussão e a interpretação. A civilização chegou a um lugar muito estranho e esta "Revolta" é o reconhecimento desse facto.
Enquanto isso, no interior daquela casa, é o desejo, o sexo, a paixão, que dominam as personagens e os seus comportamentos.
Quis fazer um filme que tivesse uma forte carga sexual, mesmo se implícita - e, nesse sentido, a ideia de confinamento, isolamento, a ausência forçada do toque e da intimidade, contribuiu para que a repressão desses instintos mais carnais tivesse, como sempre acontece, o efeito contrário: não desaparecem, longe disso, acumulam-se mesmo ali, debaixo da pele, bastando pouco mais do que um toque ou um olhar para que se revelem.
Pode falar um pouco da escolha dos atores?
Tendo sempre em conta as características das personagens, tentei encontrar o equilíbrio perfeito entre talento, profissionalismo, experiência, considerando o pouco tempo de filmagens, e a certeza possível de que haveria uma empatia profissional e criativa que me facilitasse o trabalho. Já tinha antes trabalhado quer com o Ricardo Pereira, quer com o Cristóvão Campos, e sabia que encaixavam na perfeição nessas características.
Teresa Tavares é uma revelação e nunca vimos assim Margarida Vila-Nova.
Sempre admirei a Teresa Tavares, que vi no teatro a fazer maravilhosamente de Menina Júlia, onde encontrei detalhes que me pareceram ideais para a Cristina. O único elemento do elenco que não conhecia pessoalmente era a Margarida Vila-Nova, mas a partir do momento que descobrimos que ela estaria disponível e interessada, não hesitámos.
É perfeitamente credível a teia de relações que vão estabelecendo entre eles.
Pareceu-me também que faziam sentido juntos, como grupo, que as relações se tornavam credíveis vendo-os lado a lado. Mais tarde, percebi que havia uma razão para isso: já se conheciam todos há muito tempo, iniciaram a carreira quase em simultâneo, partilharam um passado e por isso esses laços emocionais fundamentais existiam mesmo antes de começarmos a trabalhar.
Quanto tempo é que trabalhou com os atores as situações e os diálogos? Têm a precisão de um relógio suíço.
Fizemos uma ou outra leitura mas, acima de tudo, tivemos a mais-valia de ensaiar durante uma semana no próprio décor, permitindo recriar situações e diálogos, analisar o texto e encontrar situações visuais. Fizemos inclusive ensaios corridos, como no teatro, ganhando o ritmo necessário para a rodagem onde filmámos igualmente em sequência e com takes bem longos - um luxo que, acredito, ajudou a que as interpretações fossem orgânicas e com essa precisão que refere.
Imagino que não tenha havido muito lugar para o improviso.
Não houve muito, mas também cedo decidi que, neste filme, não iria ser demasiado preciso com o texto. Nem sequer tinha essa hipótese porque corria o risco de não cumprir o plano de trabalho. Se a intenção e a informação estão lá, a ordem das coisas deixa de ser importante. O diálogo é bastante construído e cinematográfico, mas os bons atores sabem quais as linhas de diálogo que devem ficar inalteradas e aquelas com que podem jogar - uma contribuição criativa que aprecio. A minha confiança neles foi total.
Para onde é que se vai, depois de um primeiro filme como este?
Para o próximo. Começar de novo, como Sísifo. É sempre assim, é a vida que escolhi, seja como argumentista seja também como realizador. Ter ideias, encontrar cúmplices, parceiros de aventuras. Tentar concretizar o que está na página. Esperar que gostem das histórias que tenho para contar e da forma como o faço. Repetir tudo outra vez. Arriscar sair do apartamento, enfrentar território desconhecido. Continuar a trabalhar.