Chamaram-lhe "A questão Irlandesa". Povoou todos os noticiários dos anos 1970, 1980 e 1990. E deixou marcas de violência indelével na Irlanda do Norte. Um desses episódios mais macabros foi "o Bloody Friday" (Sexta-feira sangrenta), a que se assinalam rigorosamente 50 anos, tal como ao "Bloody Sunday". Meio século depois, o Ulster não sarou as feridas e o Brexit só criou mais dissidências territoriais, históricas, sociais e religiosas entre católicos e protestantes. Como canta Bono, "how long must we sing this song"?
Quis o calendário de 2022 que os 50 anos da passagem da "sexta-feira sangrenta" se assinalassem esta quinta-feira. É só um capricho de agenda, que em nada altera a memória da sucessão dos episódios mais traumáticos da história da Irlanda do Norte.
A 21 de julho desse ano de 1972, 26 bombas dissimuladas pelo IRA (Irish Republican Army) explodiram em Belfast, mataram nove pessoas e feriram 130, em retaliação a outro funesto ataque, o "Bloody Sunday", perpetrado meses antes, a 30 de janeiro do mesmo ano, quando o exército britânico e as forças paramilitares protestantes e unionistas dispersaram a tiro uma marcha pacífica dos católicos de Derry, causando 14 mortos e 27 feridos.
Entre agressões e retaliações, estes foram os tempos mais agressivos de conflito multissecular, mas que teve os episódios mais sangrentos nas últimas três décadas do século XX. Entre 1969 e 1998, a guerra civil que opôs os católicos (nacionalistas, favoráveis à independência e à união das duas Irlandas) aos protestantes (defensores da integração do Ulster no Reino Unido) causou 3500 mortos e 47 mil feridos.
Paletes de rancores
A violência armada teve fim com o acordo de paz, assinado, a 4 de abril de 1998, entre o Sinn Féin, braço político do IRA, e o Partido Unionista Democrata (PUD), mas o que sobrou foi uma hostilidade multissecular, desde logo entre os dissidentes do próprio partido nacionalista, que nunca aceitaram o acordo com os protestantes.
O arame farpado foi removido, os soldados britânicos saíram das ruas e até foi instaurada uma partilha do poder entre os partidos e as comunidades, mas os sinais de tensão sempre persistiram, nas expressões, no linguajar corrente, nos pubs, nos graffiti de ódio e nas "tags" de todos os antagonismos. Ainda na semana passada, na noite de 11 para 12, a comunidade protestante voltou a dar azo à tradição anual de acender fogueiras gigantes, com paletes de madeira e pneus, para celebrar a vitória do Rei de Inglaterra, Guilherme de Orange, sobre o rival católico, em 1690.
Após 24 anos de paz, persiste o sectarismo entre protestantes e católicos, como se comprova na sequência dos resultados das eleições legislativas de maio. O Sinn Féin ganhou pela primeira vez, mas não não há maneira de se entender com o PUD para a composição bipartida do Governo regional.
Brexit
A todas estas clivagens, juntam-se os efeitos do "Brexit", que criam novas separações e recriam os velhos fantasmas. Perto de 56% dos norte-irlandeses votaram contra a saída do Reino Unido da União Europeia, demarcando claramente dos britânicos (52% a favor).
Perante este novo cenário, as clivagens políticas entre protestantes e católicos e entre unionistas e republicanos passaram a segundo plano, porque, após décadas de desenvolvimento económico, a retirada britânica da União Europeia frustrou as perspetivas mais auspiciosas, sobretudo as alimentadas pelos nacionalistas com vista à reunificação do Ulster com o Eire, a República da Irlanda, com capital em Dublin.
O Eire permanece na EU e a tirar benefício do mercado comum: é a ponte informal entre a União Europeia e os Estados Unidos, onde há uma grande comunidade irlandesa. A IBM, a Google, a Microsoft, a Intel, a Apple e o Facebook têm os escritórios europeus sediados em Dublin. Agora, com o Brexit, ressaltou imediatamente a impossibilidade de haver uma fronteira terrestre da União Europeia com o Reino Unido, via Irlanda do Norte. Foi Boris Johnson quem criou este expediente geográfico, manifestamente dúbio: para transações comerciais, deslocou a raia para o Mar da Irlanda; para a circulação de pessoas, prevalece a negociação caso a caso.
Na teia de exceções, de avanços e de recuos do Brexit, também aconteceu um facto político inaudito: pela primeira vez, o Sinn Féin ganhou as eleições legislativas e obteve maioria. Na verdade, manteve 27 deputados, enquanto o DUP perdeu três, ficando com 25. A nova ordem agudizou a crise política: a DUP recusa participar na composição do Governo enquanto o chamado Protocolo para a Irlanda não for anulado ou modificado.
Liz Truss, a ministra dos Negócios Estrangeiros e candidata à sucessão de Boris Johnson, já se manifestou contra o protocolo e disse que quer o documento anulado. Mas isso será contra a vontade da assembleia irlandesa: 54 deputados são a favor do protocolo e 36 contra. A renegociação está prevista para 2024, ainda que a anulação da exceção alfandegária do Ulster se anuncie com uma contravenção da lei internacional, com consequências imprevisíveis.
Concerto dos U2
De tudo isto sobra a memória de um concerto dos U2, aí por 1982. Nesse ano, a banda de Dublin já tinha emergido no planeta da música e foi a Belfast, na volta de promoção do disco "War", para dar um espetáculo inolvidável, com a execução de um tema, "Bloody Sunday", carregado de todo o simbolismo. "How long must we sing this song?" [Durante quanto tempo temos de cantar esta canção?], perguntou Bono à plateia.
A questão vinha já do conflito original, desde a conquista e colonização da ilha por Henrique II, ocorrida no século XII. Até à independência da Irlanda, declarada em 1921 (seis condados do Norte, predominantemente anglicanos, recusaram abandonar a "Union Jack" e uniram-se no Ulster, leal a Londres), a ilha foi sempre uma colónia explorada pelo reino. Os senhores da terra era ingleses e os irlandeses era tratados como servos e vistos como seres inferiores.
Foi nessa altura que também surgiram as primeiras sementes da revolta e outro hino muito irlandês, que os adeptos das seleções de râguebi e de futebol do Eire entoam pelos estádios. "The Fields of Athenry" é igualmente adotada como hino dos adeptos do Celtic, clube escocês fundado no século XIX pela comunidade de imigrantes irlandeses radicados em Glasgow, precisamente na deslocação forçada pela grande fome que a composição patriótica ilustra e canta com orgulho nacional.
Cronologia do conflito:
1921: A Grã-Bretanha propõe o corte da Irlanda em duas partes: os seis condados do nordeste, maioritariamente protestantes e unionistas, continuam ligados ao reino e os outros 26 formam o Estado independente da Irlanda.
1968: Várias manifestações de católicos são violentamente reprimidas.
1969: em agosto, bairros católicos revoltam-se pela exigência de direitos cívicos e são atacados por protestantes. O IRA dá os primeiros sinais.
1972: a 30 de janeiro, o Exército Britânico abre fogo contra uma manifestação católica, que ficou para a história como o "Bloody Sunday". Saldo: 14 mortos e 27 feridos. A 21 de julho, o IRA retalia e faz explodir 22 bombas em Belfast. Balanço: nove mortos, 130 feridos.
1993: atentado à bomba em Warrington, reivindicado pelo IRA. Duas crianças mortas.
1994: anúncio do primeiro cessar-fogo por parte do IRA.
1998: O acordo de Sexta-feira Santa (Good Friday Agreement) é assinado a 10 de abril, designadamente entre o DUP e o Sinn Féin. O acordo é aprovado por referendo: 74% na Irlanda do Norte e 94% na República da Irlanda.
2003: Eleições para a assembleia legislativa: o DUP e o Sinn Féin, os partidos mais extremistas, reforçam posições.
2005: O IRA depõe as armas.
2007: a 28 de janeiro, o Sinn Féin reconhece a legitimidade da Polícia e da Justiça da Irlanda do Norte. A 30 de janeiro, o Reino Unido dissolve a assembleia da Irlanda do Norte. A 7 de março, o DUP e o Sinn Féin mantêm-se nas posições cimeiras da assembleia.
2002: O Sinn Féin vence as eleições legislativas pela primeira vez.
Cronologia do "bloody friday"
A 21 de julho de 1972, Belfast foi abalada por uma série de explosões, que causaram avultados danos materiais e muitas vítimas (nove mortos e 130 feridos). Eis alguns dos atentados, separados por minutos:
14.40 - Ulster Bank, Limestone Road, no norte de Belfast: após avisos anónimos, o sítio não foi evacuado a tempo e um carro armadilhado com 23 quilogramas de explosivos rebenta entre a multidão: uma mulher, católica, perde as duas pernas e vários automobilistas ficam feridos pelas ondas de choque do rebentamento.
14.53 - Queen Elizabeth Brigde: outro carro armadilhado, com 73 quilogramas de explosivos, rebenta mas não causa feridos. A ponte, contudo, sofre avultados danos.
15.03 - York Street Station: uma bomba de cerca de 23 quilogramas de explosivos, dissimulada numa mala, deflagra na estação, antes da evacuação. Ainda assim, não foram registadas vítimas. Só avultados danos no edifício.
15.10 - Central de autocarros em Oxford Street. Um veículo explode no exterior da companhia Ulsterbus. O atentado causou inúmeras vítimas. Dois soldados britânicos perderam a vida no local. Quatro civis, protestantes, também não sobreviveram aos graves ferimentos.
15.20 - Cave Hill Road. Um carro armadilhado, com 23 quilogramas de explosivos, explode numa das ruas mais comerciais de Belfast. Não foi emitido nenhum aviso para este atentado, do qual resultaram três mortes e numerosos feridos.