Neste país lindamente à beira-mar prostrado continua a prepotência da gente pequena. E a idiotice da gente grande. As duas acasalam bem, tão à portuguesa, que quase nos comove vê-las em acção, apesar de sofrermos no pêlo.
Vacinámo-nos em dupla, em tripla, em quarta vez. Usámos a máscara. Distanciámos. Infectámos e recuperámos. E a terapêutica progrediu, embora ninguém abra a boca sobre isso. Cumprimos todo o vocabulário.
Hoje, graças ao nosso esforço, ao correr da covid ou ao que seja, a pandemia, segundo todos os indicadores, tem mais passado do que presente. Mas, nos hospitais, mantêm-se as restrições para visitar os doentes, que continuam feridos num direito: o reconforto de familiares e amigos, que é parte importante do tratamento.
Manter tais restrições - muitos hospitais ainda praticam visitas desfasadas de apenas um familiar durante trinta minutos por dia - é o que chamo a idiotice da gente grande. Talvez porque deu jeito desimpedir os corredores, talvez por inércia (neste país, é quase quem mais ordena), talvez por miúfa (decerto quem mais ordena), os decisores continuam nisto de mal decidir.
O cumprimento das restrições, por outro lado, é a prepotência da gente pequena. As decisões discricionárias servem-nos de segunda pele, somos povo de servir, povo de não queria incomodar, povo de se faz favor. Sem alguém que dê um berro de basta, preferimos manter o cachaço rasteiro ao chão, onde pertencemos. De maneira que, pelos hospitais, se dá a dança dos corredores.
Vejam, que é para ver: os visitantes num virote contra os seguranças, uns destes forçados a cumprir, outros com gosto de mandar; os visitantes num passo a mais contra os funcionários, num não me toques, num foge de mim. E lá nas camaratas, onde a enfermidade é mais pesada e se sente o hospital como um animal que dorme antes de engolir, os doentes aguardam que as visitas consigam contornar as restrições.
Eu ajudo ao contorno com algumas regras: 1.ª mentir sempre, mentir tudo, mentir bem; 2.ª as caixas de multibanco, quando localizadas depois da recepção, são nossas amigas ("vou só ali levantar dez euros, desculpe o mau jeito, é um instantinho" - e depois esgueirar-se para o quarto do doente); 3.ª aproveitar as passagens de testemunho entre os turnos, quando há maiores distracções; 4.ª, em último caso, não esteja o doente obrigado à cama, chamá-lo à porta do hospital.
Enquanto permanecerem as regras do mau-visitar, acho bem que permaneçam as regras do bem-contornar. Sempre mostraríamos alguma vontade de levantar o cachaço.
*Escritor
o autor escreve segundo a antiga ortografia