A nota que a editora Puffin inseriu algures nas novas edições dos livros de Roald Dahl, autor de "Charlie e a Fábrica de Chocolate", é digna de um castigo do senhor Willy Wonka: "As palavras maravilhosas de Roald Dahl transportam-nos para mundos diferentes e introduzem-nos a personagens maravilhosas. Este livro foi escrito há muitos anos, razão pela qual revemos regularmente a linguagem para garantir que possa continuar a ser apreciado por todos nos dias de hoje".
São demasiadas palavras para definir censura. Mas é isto que temos: demasiadas palavras, imensa teoria, muita moralidade vaga, muito cinismo disfarçado de boas intenções, para esconder algo simples, por demais conhecido, e que devia perturbar os leitores.
A revisão dos clássicos e as alterações aos manuscritos originais fazem-se hoje pela mão dos "sensitivity readers" - à falta de melhor, "leitores de sensibilidade". Prévia ou posteriormente, as editoras solicitam a estes profissionais, espécie de olheiros da boa moral e dos bons costumes, uma leitura em busca de assuntos sensíveis, formas ditas erradas de representação, maior inclusividade, correlação entre o texto e o lugar de fala de quem o escreveu, etc. Pretendem extirpar tudo o que é problemático, quem sabe para salvaguardar a editora, mas não certamente para salvaguardar a literatura.
No site da empresa "Writing Diversely", o currículo destes leitores é apresentado assim: para não-binário temos este, para sofredor de ansiedade crónica temos aquele, para filho de um pai bipolar birracial descendente em percentagem diminuta de nativos-americanos eis aqui, para assexual fluido eis ali - até que a lista de valências identitárias e traumáticas é tão demasiadamente grande que parece ficção ou pedido de auxílio.
Nisto resulta a literatura como aproximação moral à existência, mero cumprimento de um caderno de encargos produzido por almas limpas. Torna-se utilitária, e não um fim em si mesma enquanto arte. E quando não é utilitária, ou mesmo quando não cumpre escrupulosamente o caderno de encargos, põem-lhe o rótulo de "problemática" e deve ser corrigida.
Este acantonamento da experiência artística, resumindo-a à representatividade, é também um acantonamento da experiência humana - a ideia de que alguém não se representa a si mesmo, mas sim à comunidade à qual diz pertencer; logo, avalizado para vetar a escrita de forasteiros dessa comunidade.
Nas novas edições de Roald Dahl, Augusto Glupe já não é "gordo" para combater a "gordofobia", os umpa-lumpas, em vez de "pequenos homens", são "pequenas pessoas", para promover a neutralidade de género, e, tal como estas, outras dezenas de cortes e alterações.
O senhor Willy Wonka tem pois motivos suficientes para aplicar um corretivo a estes meninos malcomportados. Os leitores de sensibilidade vão pelo cano abaixo, são levados por esquilos ou incham de tanto mascarem pastilha elástica? Escolhe tu, que eu já não tenho paciência.
(O autor escreve segundo a antiga ortografia)
*Escritor