"Não te ouço. Onde estás?". Na Apúlia, é sempre assim. Qualquer conversa ao telemóvel é levada pela nortada. A ventania vence sempre e os cabelos, esses, andam presos por lenços ou ganchos, que a experiência dos rostos, cansados muitos, são o espelho de uma vida ligada ao mar e às dunas.
Ou o que resta delas. O sargaço, carinhosamente tratado por "Argaço" (o "s" voou com a nortada), foi o "Galhapão" (ganha pão) de uma comunidade que se lançava ao mar para retirar dele as algas.
"Não eram só pessoas da Apúlia que vinham para aqui. As gentes das freguesias vizinhas também se dedicavam à apanha do Argaço", recorda Manuel Silva. Com 74 anos de idade, quase 75 como fez questão de referir, ainda trabalha com o sargaço. "É do melhor que há para fertilizar os campos", explica o agricultor. Sim, agricultor, porque o sargaceiro não é um pescador. São homens que dedicam o dia-a-dia ao amanho das terras.
Os sargaceiros são homens e mulheres que, quando surge a "mareada", entre os equinócios, rumam em direcção ao mar para recolher o sargaço. Perde-se no tempo a origem deste ritual, mas as "branquetas", vestes próprias para este ofício, recordam uma possível ligação aos romanos de Puglia (Apúlia em italiano), zona do Sul de Itália. Armados, em jeito de legião romana, lutam contra o mar das praias da Couve, Pedrinhas e Cedovém, "mecas" do sargaço.
Quando a "força da lua" cospe para fora do mar alto o sargaço, pegam nas armas e correm, literalmente, mar adentro. O galhapão, arco de madeira de metro e meio de diâmetro com uma rede e armado de um cabo de três metros, serve para recolher as algas que são arrastadas para a praia. A graveta, uma espécie de ancinho gigante de 24 dentes, espalha as algas na praia, para depois entrar em acção o gaiteiro (12 dentes), que espalha o sargaço na secagem. O transporte da praia para as dunas é feito pela carrela, uma "cama" de madeira de paus travessos.
Sargaço e maceira
O "argaço" é uma alga, que depois de recolhida no mar é posta a secar. "Há quatro tipos de argaços. Há botelha, que serve para fazer a tintura de iodo; a guia, que tem propriedades medicinais; a taborra e o maio, que são as mais utilizadas para fertilizar as maceiras", explica o agricultor Manuel Silva.
Passados, três dias de secagem é armazenada com o intuito de aplicá-las nas maceiras, parcelas de terrenos cavadas e lavradas à mão em vias de extinção. "Penso que actualmente, pelo menos de uma forma original, só há a minha", afirma orgulhoso o sargaceiro, ao mesmo tempo que lamenta o abandono da actividade. "Nos anos 60, a emigração levou muita gente embora. As maceiras foram abandonadas e expostas à exploração dos interesses imobiliários", explica o último dos "moicanos" das maceiras.
"O que tiro da maceira? Amigo, o sargaço fertiliza de tal forma as areias que isto não pára de produzir. Batatas, cebola, alho, abóboras, vinhas, alface, cenouras, couves, feijão...sei lá. Tiro tudo o que preciso desta maceira e ainda dá para vender, embora hoje em dia já não leve os produtos para a feira de Barcelos. A ASAE e a fiscalização não deixam manter a actividade. Está a ver aquelas cebolas? Se as quero levar tenho de pagar mais do que ia lucrar com elas. Isto está muito mal e só produzo para mim e para os amigos", conta Manuel Silva, ao mesmo tempo que oferece às reportagem do JN uma carrada das famosas cebolas da Apúlia.
Suborno?! Não, humildade de sargaceiro, que tira das águas do mar a fertilidade que outrora era o sustento de toda a vila de Apúlia. "Chegou a morrer gente na apanha. Era uma vida dura e muito simples. Mas isto vai acabar", refere, vergando de novo as costas para deitar mãos à terra.