Radiografia da costa portuguesa

Viúvas do mar

O mar é um roubo. O mar é um ganha-pão. É a vida e o horizonte da morte, daquela que ninguém confirma numa lápide. É a onda negra que escorre da porta da igreja que é barco, do barco que é a vida de todos. E a morte de muitos. É assim. É nas Caxinas, centenas de metros de uma costa que chega a ser bela.

Alzira tem uma lápide para chorar

Naquele dia da vida de Alzira Flores, era, de facto, bela e calma, a costa, de lés a lés. Dez de Fevereiro de 1988. Mas de repente, "puxa vento, puxa mar". "Ao outro dia, olha-se o mar e ele está raso. Então? Passou-se isto e...". Um capricho de poucas horas. Eram seis da manhã quando o rádio - era assim naquele tempo - comunicava o destino para casa de Alzira. Manuel Agonia Graça Coentrão só disse, a quem o pôde ouvir, "Olhai pela minha mulher e pelos meus filhos".

O "Cláudio Manuel" partiu-se todo por causa de uma rede vadia. Eram oito a manuseá-la quando a viagem já ia a Sul, não longe de Aveiro. Perderam-se seis. Manuel Agonia e António Flores, irmão de Alzira, sepultado no mar, fotografia junto da lápide do cunhado, no cemitério das Caxinas. Aos 41 anos, Manuel foi dar à Figueira da Foz.

O mar... "Ao princípio nem para ele queria olhar". Mas teve de ser. O "Cláudio Manuel" era da família, mais "o barco da sardinha". Foi substituído. Houve que enfrentar essa sepultura infindável. A costa é a vida. "O que é que eu ia fazer?" Alzira Flores agarrou no nome, levou-o aos molhos ao cemitério e "governou a vida". O negro que veste já é de todos. Foi sendo alimentado pelas mortes. Nunca um azul voltou a servir-lhe...

Sameiro fugiu da costa. Teve coragem

António Marabalhas Novo escolheu uma de duas opções: a errada. Foi para a pesca do bacalhau na Terra Nova para fugir à tropa e a Angola. O mar sempre foi visto como a única alternativa. Tinha de fazer nove campanhas para se livrar da ameaça de morte na guerra. À nona, recebeu notícias de uma revolução em Portugal. "Compra batatas para matar a fome, que não falte nada" ao pequeno António. Não conheceu Portugal livre.

Sameiro Castro recebeu a notícia da pior forma. Informaram a fábrica errada da desgraça do "Capitão Ferreira" lá em Saint John. Já a rua sabia que Marabalhas morrera como nascera, novo. Sameiro não. Mas, secretamente, esperava um dia assim. "Quando eles viessem ao fim de seis meses, a gente gostava de os vestir bem". Não, ela não comprou roupa para ele. "Ainda acontece alguma desgraça". O negativo que "sempre" pensa lá veio.

Do mar nunca gostou. Roubava--lhe o marido metade de cada ano, escasseava-lhe as notícias da paixão interrompida e, soube-o "no dia de luto" do jovem marido, levara-lhe o avô e um tio. "Olha, tiveste a sorte da tua avó". Contou-lhe uma tia, assim, de chofre. Nunca ninguém achara por bem dizê-lo, tal a normalidade do infortúnio das Caxinas. Sim, Sameiro fugiu da costa. E convenceu o filho a fazê-lo também. Quebrou um fio condutor, teve coragem.

Mercedes já não chora. Ou ainda não

Mercedes André tem outra coragem. Faz por esquecer o passado dia 29 de Abril com um baldinho do peixe que o filho compra na lota e vende por grosso. À sombra de uma esquina, alguidar aos pés, escancaradamente às escondidas. Era "Noite de luar". A noite e o barco, que era dele, de Torcato Braga. Havia sete anos, os últimos de 34 de mar.

Não chora, Mercedes. Já não. Ou ainda não. Há que ganhar o pão e de que melhor lugar se poderá tirá-lo senão daquela imensidão "revoltante"? Daquele "traidor" que só precisou de 500 metros, ali à vista de quem fazia o jogging matinal, para desfazer uma data de vidas. As que giravam à volta deles, dos dois últimos condenados das Caxinas. Não, não chora. "Por dentro é uma coisa. Por fora é outra".