Mário Mesquita

Soberana tortura

A forma como foi negociado o OGE para 2011 transformou-se, para quem desejasse formar o seu juízo de modo realista e honesto, numa soberana tortura, infligida por actores políticos e mediáticos ao resto do País. O cidadão comum, com acesso a jornais, rádio, televisão e mesmo Internet, era bombardeado por declarações avulsas, pequenas frases assassinas, ataques ad hominem e informações parcelares e descontextualizadas, que não facilitam uma visão de conjunto das contas de Estado.

Governo e oposição aproveitaram os sucessivos passos da negociação, que se davam em Bruxelas e Lisboa, para dramatizarem o debate prévio à aprovação do Orçamento na generalidade.

Certas estações de rádio, por exemplo, referiam-se aos sucessivos avanços e recuos dos juros da dívida soberana portuguesa, como se estivesse em causa relatar uma emocionante competição desportiva. Associava-se as oscilações da dívida ao regresso do FMI a Portugal, com certas vozes a oporem-se e outras a defenderem essa solução. As intervenções do FMI em Portugal nos anos 80 permanecem na memória de muitos especialistas ou políticos, em Portugal e fora dele, mas, nessa época, era possível utilizar a desvalorização da moeda própria para manter a competitividade das exportações.

A crise não se confina à aprovação do OGE, num quadro de Governo sem maioria no Parlamento, nem é exclusivamente financeira, visto que estão em jogo toda a economia portuguesa e os rumos tomados por sucessivos governos após a adesão à União Europeia. A situação actual possui uma dimensão global, outra europeia e outra ainda especificamente interna. A existência de um jornalismo distanciado deveria evitar que a análise, a curto e a média prazo, seja afectada pela perspectiva imediata da luta política em Portugal.

Podemos recuar à crise financeira iniciada nos EUA em 2008, mas se focarmos apenas a Europa temos como antecedente próximo a crise na Grécia, colocando indirectamente em risco a Espanha, Portugal e a Irlanda, com possibilidade de alastrar à zona euro no seu conjunto. Mas, apesar disso, Paul Krugman sustentava, há algum tempo, que a França, a Alemanha e o Benelux, não se resignariam ao colapso da Zona Euro e, afinal, do projecto europeu. Mas Krugman, numa entrevista ao El País, em Julho passado, já se mostrava muito crítico e algo surpreendido com a atitude alemã daquela altura, classificando-a de "destrutiva" e até "autodestrutiva". A austeridade num País poderoso como a Alemanha tem efeitos de contágio que se repercutem por toda a Europa, incluindo naturalmente Portugal.

Quando Krugman passou alguns meses no Banco de Portugal, em 1976, na qualidade de estudante do MIT, o nosso país ainda podia jogar com a desvalorização do escudo, para aumentar a competitividade das exportações. Actualmente, esse instrumento já não está ao nosso alcance. A receita que nos é proposta, reflectida no OGE aprovado, na generalidade, na Assembleia da República, é a da austeridade que dificilmente permitirá reduzir o desemprego ou relançar o crescimento económico.

O alcance do acordo de incidência parlamentar entre o Partido de Governo e o PSD só faria sentido se implicasse uma certa dose de moderação no relacionamento entre os dois partidos, pelo menos até ao final do ciclo eleitoral que se desenha para 2011. Não seria lógico esperar do PSD que renunciasse ao seu papel oposicionista, se colasse aos actos do Governo, na execução do Orçamento, nem que aprovasse de olhos vendados as medidas a discutir na especialidade, mas que se comportasse com uma atitude consentânea com voto de abstenção: nem a solidariedade de uma co-responsabilidade plena, nem a ferocidade oposicionista. Caso contrário que sentido fazem o acordo e a sua cínica difusão numa foto de telemóvel? Apenas um atestado de cedência às pressões de Bruxelas e do Palácio de Belém?

Esta polémica contínua não enfraquece apenas o Governo e o seu principal opositor. Depõe contra o sistema democrático no seu conjunto. E apenas é minimizada pelo papel moderador do Presidente Cavaco Silva e de alguns "senadores da República", em especial os seus antecessores, Eanes, Soares e Sampaio, que tentam, sem grande sucesso, acalmar a tempestade em curso.

MÁRIO MESQUITA