Discurso feliz ou infeliz? Discurso ponderado ou mero desabafo? Discurso de autodefesa ou vingativo? As interpretações dividem-se acerca da tradicional alocução do presidente reeleito. Sem as ter propriamente contabilizado, parece-me que a maior parte das leituras convergem no sentido do ajuste de contas com os adversários do presidente que, em termos diferentes, pediram explicações sobre determinada operação financeira em que se envolveu o cidadão Cavaco Silva. O eleitorado manifestou-se aparentemente indiferente à questão, tal como nas legislativas se pronunciou sem atender aos diversos "casos" que visavam o primeiro-ministro José Sócrates. Os escândalos constituem uma arma eleitoral de duvidosa eficácia, mesmo se vão, a pouco e pouco, minando a confiança no sistema político e nos representantes eleitos.
De um ponto de vista estético e ético (aqui as perspectivas são inseparáveis), o discurso foi censurado com vigor. Mário Soares comentou: "Em lugar de ser generoso e magnânimo para com os vencidos, foi rancoroso" (DN, 25 de Janeiro). Os analistas políticos tentaram descodificar a atitude do presidente. António Costa Pinto, politólogo, entende que "ter sido apanhado no caso BPN, que está a ser criminalizado, perturbou-o emocionalmente", sustentando ainda que "não ouviu os conselheiros" ("Público", 27 de Janeiro). A socióloga Susana Salgado, pelo contrário, considera que a intervenção de Cavaco Silva não traduziu apenas uma irritação momentânea e circunstancial: "A sua atitude de não responder aos adversários mudou sensivelmente nesta última campanha, e parece-me que isso não foi só devido aos frequentes ataques de que foi alvo, mas também porque pretendeu mostrar que seria mais actuante e interventivo num segundo mandato. O seu discurso na noite das eleições vai um pouco nessa linha" ("Público", idem).
Concordo com Susana Salgado. Quem conhece alguma coisa dos bastidores das campanhas eleitorais sabe que as proclamações de vitória ou de derrota são, por via de regra, preparadas com antecedência, sofrendo, quando muito, ajustamentos de circunstância. Cavaco Silva sabia, de há muito, que tinha elevada probabilidade de vencer à primeira volta. O discurso vitorioso estaria, provavelmente, preparado há algum tempo, com a ajuda dos conselheiros e assessores políticos. A emoção não terá sido apenas teatro, mas na vida política a dimensão teatral está sempre presente. À "representação sem mandato" conferida pelos eleitores, junta-se a "representação" no palco (sobretudo, televisivo) desempenhada pelos actores políticos. O presidente reeleito, ao escolher o tom de "poucos amigos" da sua comunicação, visou dois efeitos: reforçar a sua imagem de pai severo e honesto e anunciar uma nova fase do seu exercício presidencial marcada por maior intervenção e dureza.
O que significará esta nova fase política? Constitucionalista e deputado europeu, Vital Moreira sustenta que as presidenciais de 2011 se caracterizaram pela "incontestada consolidação do modelo constitucional do presidente da República", até porque "não houve nenhuma proposta de maior presidencialização do regime nem de mudança nos actuais poderes constitucionais do presidente" (DN, 25 de Janeiro). Mas, como bem sabe o constitucionalista, não se pode confundir a (eventual) reconfiguração do papel institucional do presidente em termos da Constituição com uma (possível) prática baseada numa interpretação mais ampla dos poderes presidenciais.
Poderá argumentar-se que, para tanto, seria necessário que o presidente tivesse obtido uma vitória mais acentuada. Mário Soares sublinhou, com razão, que, "feitas bem as contas ao volume de abstenção, a metade que votou nele está longe de ser maioritária...". Isso é certo, como também é exacto que o campo dos votantes em Cavaco Silva atravessou, ao que revelam algumas análises, o eleitorado dos partidos do arco central (PS, PSD e CDS).
A força legitimadora para aumentar a intervenção do presidente, ou mesmo para impulsionar uma "presidência musculada", não resulta necessariamente dos resultados obtidos nas urnas. Pode basear-se no agravamento da crise financeira e no enfraquecimento do sistema partidário. O próprio recurso à intervenção de uma instituição internacional como o FMI é susceptível de favorecer o reforço do lugar geométrico do presidente. A rudeza de Cavaco Silva, no dia das eleições, ficou como predisposição ou aviso. O implacável primeiro-ministro Cavaco Silva dos anos 80 e 90 está de regresso. Pelo menos, em termos de discurso político.