Cultura

"Violetas": cicatriz coreográfica sem curativos

Piny, um portento em potência Pedro Correia

“Violetas”, de Vânia Doutel Vaz, conta com um elenco de luxo, mas ficou nos interstícios. Peça pode ser vista esta sexta-feira e sábado no Teatro do Campo Alegre, no Porto.

No palco nu do Teatro Campo Alegre, no Porto, há cinco presenças que se movem como pressentimentos. “Violetas”, criação e interpretação de Vânia Doutel Vaz para o Festival DDD, com Lua Aurora, Lucília Raimundo, Piny e Wura Moraes, não quer encantar – é uma dança íntima, seca, sem adornos.

Um convite a ver o corpo sem moldura, e a escutar o que acontece quando tudo o resto se cala.Aqui, o corpo é o começo e o fim. Não há música a guiar, nem narrativa que apazigue os 60 minutos da peça. Há resistência, tensão, pulsação interna. As intérpretes, todas mulheres afrodescendentes, dançam como quem ocupa e escreve território com os pés. Passeiam-se sobre o dorso umas das outras, desenhando cicatrizes coreográficas de quem passou por ali.

Há algo de animal na gestualidade – uma tensão selvagem entre o ataque e a defesa.

Piny, inclassificável, carrega no corpo contemporâneo flamenco, voguing, dança oriental e b-boying, mas recusa fixar-se em qualquer uma dessas categorias. É corpo-movimento em estado bruto.  Arranha o espaço, faz lanhos no cenário, deixa marcas que depois Vânia Doutel tenta consertar, como quem lambe feridas.  

Lucília Raimundo e Wura Moraes oferecem uma fisicalidade que não se submete à estética, mas à verdade. Lua Aurora é silêncio que escorre. Vânia surge como uma marioneta do seu próprio peso, movida por uma força telúrica – e quando levanta o dedo, não é gesto, é acusação.“Violetas” joga com a expectativa, com aquilo que pressupomos antes de vermos.

Cada gesto é também uma pergunta: o que esperamos de um corpo em palco? É uma peça que se recusa a confortar. Em vez disso, instala-se nas margens, nos interstícios, naquilo que não sabemos nomear. Precisávamos de mais do que as cicatrizes coreográficas que nos deixaram em anos anteriores.

Catarina Ferreira