Cultura

Sun Ra: uma orquestra flamejante a viajar pelo jazz

Sun Ra Arkestra: a orquestra com origem nos anos 1950 aterrou na Casa da Música, no Porto. DR

Sun Ra Arkestra deu um concerto memorável na Casa da Música, no Porto. Jornada ao vivo foi da vanguarda ao classicismo.

Treze músicos em fatos retrofuturistas, a vibrarem em lantejoulas, deram nesta quinta-feira à noite um concerto memorável na Casa da Música, no Porto. Uma orquestra flamejante com origem nos anos 1950, fundada por um dos nomes maiores do jazz de vanguarda – o ‘alien’ Sun Ra. 

Foi antologia de momentos da história do género – da dissonância mais desvairada ao classicismo das “big bands”. Tudo pontuado pelo humor e pelo desejo de viajar pela galáxia.

Liderada atualmente pelo saxofonista de 99 anos Marshall Allen, a banda que incorporou a filosofia cósmica de Sun Ra – reclamava-se habitante de Saturno com a missão de pregar a paz – e a sua insaciável vocação exploratória, começou pelos registos mais atonais, como que prevenindo que a sua música exige disponibilidade e conhecimento.

Um conjunto de metais, bateria, percussões, órgão e contrabaixo, além de efeitos pré-gravados, iniciam um diálogo, ou discussão, em modo de improviso: o que significa que na base de uma dada estrutura rítmica cada instrumento intervém em apoio ou em função solista, ocupando os espaços e as pausas que se abrem no tecido orquestral ou respondendo a sugestões temáticas por parte de outro instrumento. 

A alternância dos momentos coletivos e a solo resultou numa acumulação que gerava quase o som de uma cidade, em toda a sua dissonância e cacofonia. Também a voz de Tara Middleton funcionava, nestes casos, como mais um elemento a acrescentar à massa orquestral, soltando frases telúricas e siderais.

O tecido da complexidade

Noutros temas, percebia-se a influência da Sun Ra Arkestra no novo jazz multicultural londrino, onde pontificam nomes como Sons of Kemet, Nubya Garcia ou Moses Boyd. A fusão com ritmos africanos e caribenhos era desenhada há muito pelo norte-americano, que foi também um dos precursores da utilização de teclados eletrónicos e sintetizadores no contexto do jazz.

Num espetáculo que foi do mais difícil ao mais imediato, sem nunca perder riqueza e complexidade, os últimos temas, alguns deles do álbum “Swirling” (2020), pareciam regressar ao início de toda a história – o swing dos grandes ensembles de Duke Ellington, Count Basie ou Stan Kenton dos anos 1930/40; com a voz de Middleton a inserir-se na tradição do jazz vocal.

Psicadélico, amável, desafiante, o espetáculo revelou também o lado performativo da orquestra, que constantemente trocava sinais e sorrisos, passava mensagens sobre a natureza e exibiu um dos seus decanos  numa invejável sessão de ginástica. No público havia de tudo: de jovens músicos de jazz ao tipo de apreciadores que provavelmente só sai de casa nestes dias.

Ricardo Jorge Fonseca