Praça da Liberdade

Justiça em sociedade injusta

Na minha infância e juventude, a missa dominical era o único lugar e tempo significativo onde estavam presentes pobres e ricos. Mas dentro da Igreja ocupavam lugares distintos. Naquele Portugal atrasado, as mensagens ali transmitidas (quase no total) justificavam as enormes desigualdades e a pobreza extrema, vividas nos sete dias da semana. A “justiça” que pobres e miseráveis podiam almejar exigia subserviência perante ricos e poderosos, associada ao reconhecimento da sua condição como algo que emanava da vontade de Deus.

A democracia venceu aquela grotesca cultura, mas há raízes que ficaram nas entranhas da sociedade. Num período em que o tema da justiça está com grande enfoque e se deseja que seja bem tratado, é bom lembrar que o seu mau funcionamento não cumpre uma das suas missões em democracia: propiciar reequilíbrio de poderes e direitos, e assegurar reparação para cidadãos ou entidades lesadas. E, entretanto, acentua muito as desigualdades e injustiças. Temos 50 anos de vida democrática e o direito à justiça, em pleno e em tempo útil, continua a não existir para a maioria dos portugueses.

Na passada quarta feira, num debate promovido pela Associação Causa Pública, o juiz conselheiro jubilado Noronha do Nascimento apresentou o longo registo das crises da justiça desde os anos sessenta do século passado e afirmou que, a seguir ao 25 de Abril, se discutiu a importância de ser criado um “Serviço Nacional de Justiça”, exatamente para impedir que, tendo em conta as enormes fragilidades de recursos dos portugueses, o direito à justiça deixasse de ser universal.

Esta semana foi divulgado, no âmbito das atividades do Instituto para as Políticas Públicas e Sociais do ISCTE e do ICS da Universidade de Lisboa, o “Inquérito sobre a justiça”, que merece leitura atenta. Ali se conclui que a justiça funciona mal e não parece ter tendência para melhorar. Os portugueses consideram que pior só está a saúde - que seria hoje um drama se não existisse o SNS. Os problemas vêm de longe e as principais responsabilidades são atribuídas a procuradores, juízes e políticos.

Os magistrados, juízes e procuradores, são seres humanos como todos os outros: têm relações sociais e estão sujeitos ao erro, como o comum dos mortais. A delicadeza da sua função exige uma formação cuidada, não para os colocar acima da sociedade, mas sim para apurarem capacidades de interpretação, comunicação e relacionamento, que lhes possibilitem ser o mais justos possível. Necessitam de capacidade para reconhecer e tratar o erro, e de estar sujeitos a escrutínio: de forma alguma realizado na praça pública. Também para que os julgamentos não sejam aí feitos.

Como salientou o juiz conselheiro atrás mencionado, um poder discricionário corre o risco de se tornar arbitrário. Na entrevista que concedeu à RTP, a Procuradora-Geral da República mostrou incapacidade autocrítica e crítica. Isso não ajuda ao debate sereno que é preciso fazer, por forma a evitar prepotências ou perigosas voltas de 180 graus.

Os injustiçados - existem e têm o direito a evidenciar as injustiças - têm de fazer um esforço para alargar os horizontes do debate. Os jornalistas e comentadores que identificaram os casos e casinhos que moeram António Costa e o seu Governo podiam fazer agora um ponto de situação sobre o que aconteceu em cada um deles. E cada um de nós, enquanto cidadãos, tem de exigir rigor.

Manuel Carvalho da Silva