Opinião

Adesão à vítima

As imagens dos apoiantes de Trump no congresso do Partido Republicano mostram como a adesão ao adesivo de vítima será a cola e o espírito santo de orelha que unirá todos os cacos que a conduta do ex-presidente produziu ao longo dos tempos de governação e de oposição. A vergonha alheia existe mas não vive, exultante, nos EUA. É muito difícil encontrar alguém que tenha ido tão longe no sectarismo e divisionismo, ou na exploração do ódio e da demagogia como Donald Trump. No terceiro dia da convenção de Milwaukee, as fragilidades de Biden passaram para segundo plano, porque há uma nova vítima que importa engrandecer. O novo herói apaziguador americano vestiu a pele de cordeiro depois de ser lobo e condenado convicto. Quando a alternativa a um herói em declínio é um novo herói do declínio do império americano, o argumento escreve-se com um toque de Hollywood e de cantata da Broadway.

O financiamento interessa e decide mas a liquidez não vem só dos seus apoiantes. O discernimento dos adeptos de Biden que apelam à desistência da corrida presidencial é já um lugar de senso comum habitado, entre outros, por Barack Obama e Nancy Pelosi. Alguns começam a recuar nas dotações e talvez esse seja um factor tão decisivo como as sondagens podem vir a ser. A um Partido Republicano que morreu definitivamente, seco e enterrado, às mãos do racismo e misoginia, do negacionismo e do putinismo oportunista, o Partido Democrata contrapõe um conjunto de barões assinalados mas sem armas, incapazes de aproveitar a venda em hasta pública de um opositor que alienou toda a sua história para apostar fichas numa roleta de demagogia e de perigo eminente. À morte do Partido Republicano, os democratas nem um candidato com prazo de vida política conseguem contrapor.

É impossível encontrar um racional que explique como se transforma em herói alguém que esteve prestes a morrer às mãos das armas e do veneno que sempre semeou. As motivações do jovem atirador, declaradamente republicano, interessam pouco porque não cumprem o roteiro do argumento de oposicionista político que convém. Joe Biden tentou restringir ou proibir a própria arma do crime, mas também isso não conta para o caminho dos Oscars. O prémio é mesmo do adereço, da fava feita brinde, pechisbeque de um bolo que ninguém conseguirá pagar mas que o Mundo assumirá como seu. Só Michelle Obama ou Kamala Harris poderão ter uma palavra e mesmo essa, improvável, chegará tarde. Mais do que um diagnóstico de aptidão ou de um caso de saúde grave, urge o aparecimento de uma sondagem demolidora para o Partido Democrata. Ou noção.

O autor escreve segundo a antiga ortografia

Miguel Guedes