Inovação

Agricultura urbana e partilha de alimentos florescem na Europa

Projetos de hortas comunitárias trazem benefícios para a saúde mental, dizem os especialistas Rui Oliveira/Global Imagens

A agricultura urbana e a partilha de alimentos estão a florescer na Europa com o auxílio das tradições locais e da investigação da União Europeia.

Imagine o seguinte cenário nos Países Baixos: crianças lançam dados e movem a avó à volta de um tabuleiro para recolher os ingredientes necessários para uma refeição.

Este é um jogo de tabuleiro muito popular entre as crianças de um bairro da cidade de Utrecht. Mas este divertimento é mais do que aparenta.

Receitas e mapas

"No final do jogo, as crianças recebem um pequeno cartão com uma receita e um pequeno mapa para que possam procurar os alimentos na sua própria floresta alimentar", afirmou Jessica Duncan, socióloga da Universidade de Wageningen, nos Países Baixos, cuja equipa foi responsável pela conceção do jogo.

A sua floresta alimentar faz parte de Rijnvliet, um bairro onde os residentes podem colher maracujás, peras, ervas aromáticas, maçãs e outros ingredientes. Um grupo de artistas montou um acampamento para reunir a comunidade em torno da diversão gastronómica. Numa sexta-feira à noite, fizeram pizzas com ingredientes da floresta.

Esta floresta alimentar neerlandesa é apenas um exemplo da crescente popularidade das hortas urbanas e das atividades alimentares comunitárias que se propagam por toda a Europa, à medida que as pessoas aderem a produtos locais mais sustentáveis.

"Estamos a assistir ao aparecimento de uma onda de partilha de alimentos por uma série de razões", afirmou Duncan, que visitou a floresta alimentar no âmbito de um projeto de investigação denominado CULTIVATE, no qual participa.

Com a duração de quatro anos, até ao final de 2026, o projeto recebeu financiamento da UE para promover a partilha sustentável de alimentos na Europa.

Numa altura em que a Europa procura melhorar a alimentação humana e a pegada ambiental da agricultura, as cidades, os subúrbios e as vilas podem desencadear a mudança, uma vez que são o lar da maioria das pessoas que vivem na UE.

As autoridades urbanas, os residentes e os grupos de voluntários podem definir a fasquia para a produção e o consumo de alimentos através das escolhas que fazem em matéria de aquisições nas escolas e cantinas públicas, gestão de resíduos, cadeias de distribuição locais e até mesmo o cultivo de alimentos.

Estas medidas promovem o objetivo do Pacto Ecológico Europeu de um sistema alimentar sustentável em que a saúde das pessoas, das comunidades e do planeta é reconhecida como estando interligada.

Partilhar é cuidar

Um coletivo denominado "Food Not Bombs" na cidade polaca de Gdansk, no Mar Báltico, é outro exemplo de partilha de alimentos que está a enraizar-se na Europa.

Os voluntários recolhem alimentos perecíveis deixados no final do dia de mercado para fazer sopa, oferecendo-a gratuitamente a turistas e pessoas em situação de sem-abrigo. Um anterior projeto de investigação da UE, SHARECITY, compilou um registo de iniciativas de partilha de alimentos como estas. O projeto mapeou atividades em 100 cidades de todo o mundo, onde existem milhares de iniciativas como hortas urbanas, cozinhas comunitárias, distribuição de excedentes alimentares e partilha de sementes.

"Sempre partilhámos alimentos", afirmou Anna Davies, professora de geografia no Trinity College Dublin, na Irlanda, que coordena o projeto CULTIVATE. "É a base da civilização humana".

A agricultura urbana pode ser uma forma de restabelecer a ligação com a natureza, construir relações e adquirir novas competências, ao mesmo tempo que se adquire um sentido de realização pessoal. De acordo com os investigadores, é frequente as pessoas sentirem uma melhoria da saúde mental ao desfrutarem dos frutos do seu trabalho com outras pessoas.

"As hortas comunitárias podem gerar uma série de benefícios – além do cultivo de alimentos – tais como a redução da solidão e o aumento da saúde e do bem-estar", afirmou Davies.

Fora do radar

No entanto, os esforços alimentares urbanos podem estar ausentes dos planos oficiais sobre nutrição, apoio social e desenvolvimento urbano.

Isto deve-se, em parte, ao facto de os esforços comunitários de partilha de alimentos poderem ter pouco tempo para promover os seus benefícios.

"Raramente os seus impactos são medidos", afirmou Davies.

Uma horta comunitária urbana pode oferecer atividades gratificantes a voluntários idosos ou fornecer alimentos a um programa de pequeno-almoço escolar, mas estes contributos não são, em grande parte, registados pelas autoridades.

O CULTIVATE pretende garantir que a partilha de alimentos seja mais conhecida e apreciada.

O projeto utiliza a inteligência artificial para mapear, seguir e monitorizar as iniciativas europeias de partilha de alimentos que possuem uma presença online.

Uma plataforma online – Sharing Solutions – dará a conhecer essas iniciativas e informará sobre os seus objetivos ambientais e sociais. A plataforma será testada em Utrecht, Barcelona (Espanha) e Milão (Itália).

Ligação cultural

Outros também estão a analisar mais de perto os benefícios colaterais da agricultura urbana.

Cristina Grasseni, professora de antropologia cultural na Universidade de Leiden, nos Países Baixos, investiga a alimentação para estudar as culturas.

"A produção de alimentos parece ser positiva para a saúde mental das pessoas", afirmou.

A abordagem de Grasseni consiste em conviver com os seus objetos de estudo, como quando passou duas temporadas com pastores de vacas dos Alpes a levar o gado para pastagens altas.

Mais recentemente, Grasseni fez voluntariado numa quinta na cidade, em Utrecht, no âmbito de um projeto financiado pela UE liderado pela própria. Denominado FOOD CITIZENS, o projeto teve início em setembro de 2017 e decorre até ao final de fevereiro de 2024.

Grasseni afirmou que as iniciativas urbanas de cultura alimentar podem oferecer muito mais do que a experiência de ir a um supermercado, "como recuperar o contacto com a natureza, colocar a mão na massa, ativar redes de relações e estar num ambiente de baixo stress".

O projeto investiga o envolvimento das pessoas na agricultura em cidades europeias, incluindo Roterdão, nos Países Baixos.

Num fundo fundiário a norte de Roterdão, cerca de 200 famílias possuem, em conjunto, 20 hectares de terra e empregam um agricultor para cultivar alimentos de forma biológica. As pessoas envolvidas aprendem com o agricultor, dedicam tempo a ajudar e partilham a colheita, cujo tamanho – dependendo das condições de crescimento – determina a quantidade de alimentos que os participantes recebem.

Mistura diversificada

De acordo com Grasseni, mais de 50 estudos de caso nos Países Baixos, Itália e Polónia mostram que não existe uma abordagem única para as iniciativas alimentares auto-organizadas na Europa e que não existe um "cidadão alimentar" comum.

As florestas alimentares parecem ser especialmente populares nos Países Baixos, enquanto a Polónia mantém uma cultura de parcelas urbanas para o cultivo de legumes.

Rijnvliet foi construído num dos últimos terrenos agrícolas de Utrecht e a sua floresta alimentar presta homenagem a esse património. Oferece vegetação, alimentos cultivados localmente e um ponto focal para a comunidade.

Aí, as crianças estão a descobrir que os alimentos crescem realmente nas árvores e esperam ansiosamente pelas futuras colheitas para preparar as receitas da avó.

FOOD 2030

A UE está a tentar estimular uma transição para sistemas alimentares sustentáveis, saudáveis e inclusivos através do seu quadro estratégico de investigação e inovação conhecido como "Food 2030".

A iniciativa "Food 2030" é impulsionada pela consciência de que os atuais padrões de produção e consumo são afetados e contribuem para crises como a subnutrição, as alterações climáticas, a perda de biodiversidade e a escassez de recursos.

O quadro reúne intervenientes na investigação e inovação em diferentes áreas para enfrentar desafios interligados através de uma abordagem sistémica e com múltiplos intervenientes.

Os principais objetivos incluem o desenvolvimento de conhecimento e soluções com impacto que promovam regimes alimentares saudáveis e sustentáveis; sistemas alimentares circulares, ambientalmente inteligentes e ecológicos; e comunidades resilientes e capacitadas. Outros grandes objetivos são o incentivo a novos modelos empresariais, o reforço das capacidades e a educação para uma transição justa e equitativa dos sistemas alimentares, respeitando os limites do planeta.

Este artigo é relevante para o percurso da iniciativa "Food 2030" relativamente à transformação dos sistemas alimentares urbanos.

Este artigo foi originalmente publicado na Horizon, a Revista de Investigação e Inovação da UE.

Redação