Cultura

Frederick Wiseman: “Bem ou mal, o que quero é fazer filmes”

"Se Trump ganhar será um desastre para o mundo inteiro", diz o realizador de 94 anos Foto: Arquivo/Global Imagens

Lendário cineasta norte-americano regressa à ficção com “Um Casal”, um filme que aborda a correspondência entre Tolstoi e a mulher.

É um dos mais belos objetos fílmicos que se encontram em exibição nas salas de cinema. “Um Casal” filma Sophia Tolstoi, interpretada pela atriz francesa Nathalie Boutefeu, lendo a correspondência que manteve com o marido, o escritor Leo Tolstoi. O filme é uma das últimas realizações de Frederick Wiseman, um dos maiores documentaristas que o cinema jamais conheceu e que, aos 94 anos, volta a interessar-se pela ficção. O JN esteve a falar com o realizador norte-americano, há duas décadas radicado em Paris.

É mais conhecido como documentarista. Porquê este novo interesse pela ficção?

É a segunda que faço. Em 2002 já tinha feito uma ficção, “A Última Carta”, baseado em alguns capítulos de um romance de Vasiliy Grossman, um grande escritor.

E agora, o que o motivou?

Fiz este filme durante o covid. Precisava de trabalhar. Filmámos numa ilha em Inglaterra onde não havia covid. Não acredito que as pessoas tenham de ser separadas por categorias. Em França chegaram a dizer que eu não tinha direito a fazer um filme de ficção, porque sou documentarista. Acho isso até cómico. Sou um realizador de cinema, faço o que me apetecer. Bem ou mal, é o que eu quero fazer. Faço filmes, é só isso.

Como é que descobriu estas cartas do Tolstoi?

Foi a Nathalie Boutefeu que me passou o livro, pensando que talvez pudéssemos fazer um filme. Nós já tínhamos colaborado, em 2007, numa peça de teatro baseada nas cartas e nos poemas de Emily Dickinson. Ficámos amigos e discutimos a possibilidade de fazer um filme juntos.

Como é que procederam à adaptação do livro?

O livro é enorme, são mais de 800 cartas. Lemo-las todas mas não sabíamos ainda quais iriamos escolher e em que ordem é que seriam lidas. Escolhemos aquelas que revelariam melhor o tipo de relação que eles tinham. A primeira versão do argumento tinha uma centena de páginas, que trabalhei em termos de estrutura até chegar à versão final, com cerca de trinta páginas.

Está habituado a filmar o real, que vê à sua volta. Quais são os principais desafios, quando faz ficção?

Depende sempre do que se quer filmar. Escolho o tema e depois penso em como é que o vou filmar. Como é que quero contar aquela história em termos visuais.

Os seus documentários são conhecidos pela sua longa duração. Esta ficção, como a outra que tinha realizado, é bastante mais curta…

A duração de um filme depende da matéria com que se está a trabalhar. Nunca digo a mim mesmo que vou fazer um filme de uma, três ou seis horas. É o tema que acaba por impor a duração do filme. Não estou agarrado a uma duração em particular.

Há quase 60 anos que filma as instituições americanas. Têm evoluído da forma como esperava?

Não posso responder, porque nunca volto aos locais onde já filmei. Posso dizer que sou um estudioso das instituições que filmo, mas no momento em que as filmo. Nunca volto, para saber o que se passou depois.

Agora vive em França, pode dizer-se que exilou dos Estados Unidos. É muito provável que Donald Trump volte à Casa Branca. Sente-se cada vez mais afastado da América?

Eu gosto de viver em Paris. Mas volto todos os anos aos Estados Unidos, a festivais e coisas assim. Estou muito perturbado com a ideia de Trump voltar. Espero que o julgamento que está a decorrer lhe cause danos. Os estudantes também se estão a revoltar. Espero que ele não ganhe, se ganhar será um desastre para o mundo inteiro.

Como é que se sente em França? A situação política também não é famosa…

Mas não é tão má como na América. O Macron não é o Trump. Mas há a possibilidade da Marine Le Pen ganhar as próximas eleições, daqui a dois anos e meio. Mas ainda percebo muito melhor a política americana do que a política francesa.

Pode partilhar algumas memórias das suas várias passagens por Portugal?

Estive em Portugal várias vezes, em eventos organizados pelo meu amigo José Manuel Costa. Tenho tantas memórias. Lembro-me de atravessar o rio de barco e olhar para as luzes da cidade de Lisboa do outro lado, a beber um café. De ir comer a bons restaurantes e ouvir boa música. E de conversar com as pessoas depois da exibição dos meus filmes. 

João Antunes