Se há coisa bonita que a Revolução de Abril nos deu, com a Constituição de 76, foi o pleno direito a todos de ir votar. Mas com a iminência de eleições antecipadas, dou por mim fartinha. Sim, senhora. É um direito conquistado que muito fez e faz pela justiça e pelo progresso, mas quer dizer, tudo o que é demais..., não é? Votámos tantas vezes nestes últimos tempos, que ainda tenho os pulsos assados de tantas cruzinhas. Estou a brincar! É que um dia ainda ganha o Ventura e acaba-se esta brincadeira de votar. E não foi fácil convencer o poder político de que, especificamente as mulheres, merecem exercer igualmente a sua cidadania.
A demora da conquista desse direito pode dever-se à perceção de que as mulheres são demasiado indecisas. É provável que se imaginasse que a cabina de voto seria como a cabina do provador da Zara: gosto mais do rosa ou do laranja? Qual é que me favorece mais? E se arriscar no azul? E nisto, o dia eleitoral transformava-se na semana eleitoral e ninguém tinha vagar para isso. Em 1911, Beatriz Ângelo, médica e viúva, votava pela primeira vez em Portugal, contornando a lei que dizia que o voto se restringia a chefes de família que soubessem ler e escrever. Um nome que vai fazer sempre notícia pelo seu inconformismo e também pelo caos nas urgências em Loures.
E esta semana, para assinalar o Dia Internacional da Mulher e relembrar o caminho que ainda há para fazer, saíram os resultados de um estudo da Pordata que revelou que as mulheres ganham menos 2850 euros por ano do que os homens. A prova de que as mulheres não sofrem de histeria é lermos dados e não estarmos imediatamente aos gritos. 2850 euros. 2850 euros dão para comprar um carro no OLX, se soubermos negociar bem. 2850 euros é uma viagem para as Maldivas com tudo incluído, todos os anos. E, para além disso, são as mulheres quem mais acumula o trabalho com as responsabilidades da vida familiar.
É esperado que sejamos nós a cuidar dos filhos, do marido, dos familiares doentes, das encomendas da Vinted, da loiça na máquina, porque aparentemente ninguém mais consegue rentabilizar aquele espaço para caberem mais de dois pratos e uma panela. Fazemos de tudo porque “sabes como são os homens. Não sabem fazer multitasking”, como se fazer várias coisas ao mesmo tempo estivesse marcado no ADN. Toda a gente sabe que temos o cromossoma X, que partilhamos com o sexo masculino, e o outro X que é aquele cromossoma do estender a roupa ao mesmo tempo que se paga a conta da luz na app do banco. Será que o chamado multitasking é o ter tido uma educação para aprender a fazer uma cama de lavado enquanto o grande desafio do nosso irmão era tentar não chegar a casa borrado?
Crescer mulher também é escolher bem a rua para onde se volta para casa. É ser muitas vezes apalpada no autocarro. É ficar quando se é violentada. É poder morrer quando se sai de casa. É ver fotos íntimas partilhadas em grupos de homens e é receber fotos íntimas de homens sem serem solicitadas. É ser descredibilizada quando se denuncia. É ser posta em causa quando se defende. É chegar ao hospital com sintomas de AVC e ser mandada para casa porque a ciência tem como base os sintomas masculinos. É ser considerada o sexo fraco quando são as mulheres as mais tolerantes à dor. É ver homens a ser descritos como livres, persistentes, apaixonados, e só ter um único adjetivo: louca.
Ao mesmo tempo que nos dividimos entre trabalho - apesar de haver mais mulheres nas universidades, temos empregos mais precários - e a vida familiar, em que temos de tentar não viver num pardieiro e não falhar na hora certa da toma da pílula. É suposto que estejamos em forma, depiladas e informadas. Ser mulher é viver permanentemente num julgamento de medida certa. Não podemos ser demais nem de menos. Somos uma receita em que tudo é q.b. É não saber onde começamos nós e onde é que acaba o que é suposto ser.