Praça da Liberdade

Eleições autárquicas, uma microfísica do poder. Estado vertical e minifúndio político

Aproximam-se as eleições autárquicas marcadas para o dia 12 de outubro próximo, uma microfísica do poder que se repete periodicamente. Não obstante, continuamos a ser um país bipolar. De um lado, um poder centralizado, vertical e unitário de longa data, do outro, um poder local liliputiano onde se cultivam as pequenas constelações de poder. Se quisermos, trata-se de uma figuração quase perfeita daquilo que poderíamos designar como o país do minifúndio político-institucional.

No país bipolar que nós somos, entre a macrofísica do poder central e a microfísica do poder local, vivemos, ainda, na chamada logística dos territórios-zona (T-Z) onde se formam as pequenas constelações de poder e os canais de transmissão do chamado minifúndio político e institucional, alguns exemplos: a logística partidária das concelhias e federações e a composição das respetivas candidaturas, a logística municipal e a sua prática político-administrativa e clientelar, a logística sectorial e corporativa das associações e confederações empresariais, a logística sindical de comissões de trabalhadores, sindicatos e confederações, a logística clientelar e corporativa dos lobbies, grupos de pressão, intermediários, ordens e academias, a logística de segurança dos corpos, forças e serviços de inteligência, a logística religiosa e a hierarquia da igreja, entre outras. Todas são logísticas de limite e fronteira tendo em vista a delimitação e a inclusão-exclusão, todas seguem a lógica de vigiar, informar e sancionar e são concebidas para premiar a subordinação e punir a desobediência, isto é, todas são concebidas pelo poder vertical para reproduzir os territórios-zona. Os custos de transação destes T-Z e a gestão dos minifúndios e canais de transmissão são religiosamente vigiados, pois eles são uma fonte privilegiada de benefício e privilégio no sistema em que vivemos.

No país bipolar que nós somos, esta ideologia dualista é o caldo de cultura ideal para nela desabrochar uma sociedade intersticial onde se formam e cultivam pequenas redes de cumplicidade e pequenas constelações de poderes no interior das quais se faz o tráfico de influências e a intermediação necessária aos arranjos de conveniência. Nestas condições, o minifúndio político e institucional é uma espécie de película fina que cobre toda a sociedade portuguesa, na sua maior parte quase invisível, com algumas irrupções mais agudas aqui e ali, mas sempre com o mesmo ADN, qual seja, um arranjo de conveniência instruído nos interstícios do país bipolar e vertical.

As causas desta espécie de santa aliança, entre o Estado vertical onde estão as elites políticas do centro e o poder local onde se situa o minifúndio político-institucional, são bem conhecidas. Em primeiro lugar, o rotativismo bipartidário e o exclusivismo partidário na estruturação e formação da cultura política dos cidadãos, alimentado, de resto, pelo sistema eleitoral proporcional de listas fechadas e pelo controlo estrito das direções partidárias sobre a seleção de candidatos aos círculos plurinominais de dimensão muito variável. Em segundo lugar, a abdicação e abstenção precoces da chamada sociedade civil que preferiu, desde muito cedo, a cumplicidade e os jogos de transação político-partidária para resolver os seus problemas. Em terceiro lugar, o estreito campo de recrutamento de novos militantes, um jogo de acesso muito especial, mediado por interesses, oportunidades e obediências, muito variados e contraditórios. Em quarto lugar, o campo das ligações externas, ou seja, o conjunto de agentes prestadores e beneficiários, diretos e indiretos, permanentes e circunstanciais, que vivem em redor das prestações do Estado central e do Estado local e que, por via dos respetivos orçamentos públicos, conseguem estruturar uma rede arterial e capilar de relações muito densas que lhes providencia apoios financeiros, mas, sobretudo, expectativas positivas, estabilidade, previsibilidade, permanência e segurança, se quisermos, uma coabitação mutuamente vantajosa entre o poder central do Estado vertical e a microfísica do poder local e da sua constelação minifundiária. De resto, na prática corrente destas relações, trata-se de um campo imenso de recrutamento onde se faz o treino e a reciclagem dos dirigentes partidários e que, também, se estende ao chamado sector empresarial do Estado, num vai e vem permanente entre o que fica dentro e o que fica fora do chamado perímetro orçamental.

Aqui chegados, queremos acreditar que o PRR (até ao final de 2026) e o PT 2027 (até 2030), pelas transições que promovem e pelas agendas inovadoras e consórcios empresariais que mobilizam, podem constituir uma excelente oportunidade para combater o minifúndio político e institucional, se, para tanto, a sociedade civil for capaz de agenciar a inteligência coletiva territorial em redor de plataformas colaborativas 4C para esta década - conhecimento, cooperação, cultura e criatividade - e uma inteligência institucional verdadeiramente inspiradora. Se tal não se verificar, o Estado vertical retomará as suas prerrogativas e continuará, mais uma vez, a estrela da companhia, ou seja, o instrumento principal de redistribuição, por via do imposto, dos benefícios fiscais e financeiros, da parafiscalidade e de muitos privilégios corporativos e regulatórios. Se tal acontecer, não admira que se formem à sua volta pequenas, médias e grandes

constelações de interesses e, também, uma geometria variável de minifúndio político e institucional em torno das pequenas redes de influência e cumplicidade onde se incluem, obviamente, as autarquias locais e a microfísica do poder local. E, mais uma vez, o sistema acomoda-se, instala-se e consolida-se.

E porque é que tal acontece desta forma quase determinística?

Repare-se, por exemplo, na zona de interface entre o poder normativo dos mestres-algoritmos de Bruxelas que gerem os fundos europeus e o estaleiro burocrático de Lisboa para administrar esses mesmos fundos. Se pensarmos nos modelos de governação do PRR 2026 e do PT 2030, com comissões políticas de coordenação, comissões de acompanhamento, estruturas de missão técnica, comissões de auditoria, controlo, monitorização e execução, autoridades de gestão dos programas operacionais e regionais, agências e gabinetes de planeamento, às quais teremos de juntar as autoridades inspetivas, as autoridades regulatórias, os tribunais administrativos e de contas, os sistemas de crédito e avaliação do banco de fomento nacional e do sistema bancário, as direções gerais, as CCDR e as autarquias e o rol dos seus inúmeros pareceres e, ainda, esse pequeno monstro burocrático que responde pelo nome de código de contratação pública, teremos montada uma teia no sentido próprio e nos interstícios da qual se formarão inúmeras constelações de interesses mobilizados por aqueles programas. Se pensarmos neste labirinto quase kafkiano e nos destinatários/beneficiários do universo minifundiário que vive no interior do país, não podemos deixar de sentir um forte amargo de boca e talvez a nossa reação mais imediata seja acomodar a próxima rede de influência e cumplicidade para tratar do nosso problema pessoal ou de grupo, isto é, o acesso ao nosso próprio minifúndio institucional e corporativo.

O que fazer, então, para combater e/ou minimizar este problema estrutural de longa duração que teima em colar-se à nossa pele?

Para combater o minifúndio político e institucional que pulula em redor das autarquias locais temos à nossa frente uma verdadeira quadratura do círculo. Em vez de fazer render um capital de queixa minifundiário inconsequente, a solução passa mais por incentivar a formação de redes colaborativas e estruturas de missão executivas dotadas de musculo financeiro e pensamento estratégico e capazes de ultrapassar a estéril divisão entre litoral e interior. Refiro-me às redes de cidades e vilas, redes de conhecimento com as universidades, redes de cultura com os artistas e associações culturais, redes de extensão empresarial com as associações respetivas e redes sociais de serviços de

proximidade, sendo que muitas destas iniciativas podem assumir a figura de uma parceria público-privada de coprodução, dotada de uma plataforma colaborativa e de uma estrutura de missão executiva que providencia bens públicos e bens comuns aos cidadãos.

Um exemplo concreto diz respeito às instituições de ensino superior. Na região do Alentejo, por exemplo, existem três instituições de ensino superior e, também aqui, a desmaterialização de uma parte do ensino presencial será inevitável, pelo que a outra parte da atividade das instituições de ensino superior deverá ser dedicada à formação de redes de investigação, cooperação e assistência à comunidade. Falo de uma verdadeira revolução na inteligência coletiva territorial, de uma genuína pluriversidade.

E os exemplos de cooperação empresarial e multiterritorial também não faltam. No primeiro caso, a formação de um cluster empresarial, de um distrito industrial, de uma cadeia de valor, de um nicho de mercado, de uma marca coletiva e de um sistema produtivo local. No segundo caso, uma smart city, um parque agroecológico intermunicipal, um geoparque, uma área integrada de gestão paisagística, um condomínio de aldeias, um roteiro turístico, uma rede integrada e complementar de áreas industriais e empresariais, zonas de intervenção florestal e associações de agricultura de grupo e gestão agrupada multiprodutos, entre outros exemplos.

No final, com uma nova inteligência institucional, comunidades inteligentes e redes colaborativas talvez possamos fazer mais e melhor com menos e, quem sabe, com muito menos minifúndio clientelar e corporativo.

António Covas