Praça da Liberdade

Um casal em paz

Nas perguntas sobre a situação pessoal, de resposta verdadeira e obrigatória, Nídia foi muito directa. Nídia já estava sentada na cadeira das testemunhas, pequena para ela.

- Qual é a sua profissão?, começou a juíza.

- Desempregada.

- Desempregada é um estado, não é uma profissão...

- Não, não, eu nunca trabalhei!

Eu nunca tinha ouvido esta resposta e nem esta, mais tarde, que nunca vi tão triste: "Da parte dele, sim."

Da parte dele - neste instante do julgamento - já sabíamos: Carlos, serralheiro, passado de drogas e prisão, pele de cinza, vivia em casa de Nídia e batia-lhe às vezes. Há anos, Nídia enviuvou, mas ficou para ela a casa de arrendamento social que estava em nome do falecido.

Nas mãos da juíza e da procuradora da República estava uma decisão de natureza social, jurídica, de segurança, mas também íntima: podia Carlos voltar para junto de Nídia, ou era preciso proibi-lo até de a contactar?

- Em paz, estamos em paz, explicou Nídia.

- O que é que fizeram para ultrapassar a situação de violência?

- Estivemos juntos e conversámos sobre que... as medidas que... a nossa conversa... como se costuma dizer "casa que não é ralhada não é bem governada."

- Esse velho ditado não se aplica a estas situações. Só serve para quando é ralhar falando, não é cometendo crimes. Está pacificada com ele desde quando?

Nídia fez sobrolho desmemoriado.

- Acho que... o senhor Carlos acho que consegue dizer.

- Mas eu não lhe vou perguntar a ele, é a si que pergunto.

- Eu... eu não estava habituada a partilhar a minha vida, estava a viver uma vida solo. Habituada a chegar a casa à meia-noite, uma da manhã. E foi também preciso habituar-me à presença dele. Não só dele, mas à minha vida nova. Até que um dia ele me disse: "tu vens para casa ou então vou deixar-te."

Nídia não tem contacto com a sua família. Pura e simplesmente, disse, deixou de falar com a família, quando esta deixou de lhe ligar a ela. E "psicologicamente" não quer ter acesso à filha enquanto houver discussões, não há condições.

- Eu tomo calmantes há mais de três anos. Vou ao médico de seis em seis meses.

- Sente-se melhor?

- Um bocadinho. Ainda estou numa fase de ajustamento. Às vezes sinto necessidade de tomar os medicamentos e às vezes penso "mas tomar para quê?"

Sofreu ataques de pânico, tentativas de suicídio. À espera de mais consultas de psiquiatria, tem agora uma assistente social que a ajuda, são da mesma idade. A procuradora perguntou-lhe o que faria se o senhor Carlos voltasse à violência:

- Se sim, eu abriria a porta de casa, punha-lhe as malas à porta e diria: "sê feliz noutro lado". Aliás, as minhas portas estão sempre abertas.

- É uma pergunta difícil, mas tenho de lhe perguntar: se a senhora tivesse meios financeiros, estaria com o senhor Carlos?

- Eu ajudo-o, já que ele está também a ajudar-me muito. Quando eu recebo, eu ajudo-o. Eu como muito. Quando ele recebe, comemos do que ele ganha.

- Mas... existe sentimento?

Houve um silêncio curto na sala abafada:

- Existe da parte dele. Eu fechei um bocadinho na morte do meu marido. Aos poucos, acho que vou abrindo um bocadinho mais.

E o senhor Carlos, homem com sentimentos que existem da parte dele, suspirou porque os dois estão em paz.

(O autor escreve segundo a antiga ortografia)

Rui Cardoso Martins