Lisboa

Silêncio tornou-se um "luxo urbano" em Lisboa

Excesso de trânsito é a causa central do ruído em Lisboa Foto: Leonardo Negrão / Arquivo

Um estudo da associação Vizinhos em Lisboa revela que várias zonas da capital vivem com níveis de ruído acima do permitido por lei. O Cais do Sodré, a Misericórdia, o Bairro Alto e Alvalade estão entre as mais afetadas. Os autocarros mais antigos da Carris, motas e aviões lideram o "ranking" das fontes sonoras. Ambientalistas acusam falta de visão política e de fiscalização.

Lisboa é hoje uma cidade onde o silêncio é quase um bem de luxo. Quem vive nas zonas mais centrais - ou mesmo em bairros residenciais como Alvalade - habituou-se ao roncar dos motores, às sirenes, ao burburinho noturno das esplanadas e às vibrações de aviões em descida para a Portela. Este estudo revela que os limites legais de ruído foram ultrapassados em mais de 70% das medições realizadas

É essa a principal conclusão de um extenso estudo elaborado pela associação Vizinhos em Lisboa, que durante meses teve voluntários a percorrer a cidade para medir, rua a rua, os níveis de poluição sonora. Os dados, analisados através de milhares de registos captados por equipamentos móveis e validados por aplicações próprias, mostram valores frequentemente acima dos limites legais.

"Lisboa é aquela cidade onde o descanso se tornou um luxo urbano difícil de alcançar", comenta Rui Martins, coordenador da associação. "É basicamente uma miragem.", sublinha., acrescentando, desde logo, um dado importante: "O nosso estudo é sobre o ruído de rua, não pelo produzido dentro dos edifícios. Ou seja, não tem em conta casos como um que nos chegou de uma pessoa que sofre com o ruído provocado por uma fábrica no rés do chão do seu prédio, na Calçada do Carriche, ou do ruído provocado por um ar-condicionado, num prédio do Lumiar".

O estudo - que integra centenas de medições realizadas em várias freguesias - identifica três grandes vetores de ruído: o noturno, associado à restauração e diversão; o aeronáutico, que afeta as zonas sob a rota dos aviões; e o rodoviário, que atravessa toda a cidade

Rua do Ouro surpreende

O mapa é claro: Misericórdia, Cais do Sodré, Bairro Alto e Baixa destacam-se como os epicentros do ruído noturno, com picos acima dos 80 decibéis em várias medições. "As ruas da Atalaia e de São Paulo são exemplos clássicos, mas a surpresa foi a Rua do Ouro", explica Rui Martins. "Não esperávamos níveis tão altos numa zona essencialmente comercial.", diz, referindo-se a uma das principais artérias da Baixa Pombalina.

Nos registos do movimento constam também valores de ruído intensos em Alvalade, Campo Grande e Avenida do Brasil, zonas afetadas pelo tráfego aéreo. "Os aviões passam demasiado baixos e o ruído é constante", descreve o responsável.

A Calçada de Carriche e a Avenida João XXI são apontadas como dois dos eixos mais afetados pelo trânsito. O maior pico do estudo, 103,8 decibéis, foi registado precisamente na Avenida João XXI, quando um autocarro da Carris arrancava junto à Praça de Londres. "Fiquei espantado. Como é que um autocarro pode produzir um ruído destes e continuar a circular?", questiona Rui Martins. "Duvido que isto seja detetado nas inspeções.", acrescenta.

Motas, autocarros e sirenes

A par dos bares e do trânsito, há fontes sonoras que escapam à contabilização oficial. As motas são uma delas. "Duvido que o ruído das motas seja devidamente controlado nas inspeções automóveis", critica Rui Martins, alertando para o facto de haver pessoas "muitas com escapes alterados que fazem um barulho infernal."

Outro fator recorrente são as ambulâncias e autocarros. Quem vive junto ao Hospital de São José, explica Rui Martins, "ouve sirenes no máximo durante toda a noite". "Há razões de segurança, claro, mas há formas de mitigar isto, como usar corredores bus", sugere.

E, embora os autocarros da Carris Metropolitana sejam "mais silenciosos e recentes", os da Carris Lisboa continuam a ser "muito ruidosos". "Curiosamente, os autocarros a gás - os chamados ecológicos - são mais barulhentos do que os a gasóleo", destaca.

Respostas inaceitáveis

Além dos dados técnicos, com base nas medições registadas pelos voluntários, o relatório revela uma sensação generalizada de impotência e frustração. A Câmara de Lisboa e a Polícia Municipal são as entidades mais visadas nas queixas. "As pessoas sentem-se sozinhas quando reclamam", afirma Rui Martins. "Há uma perceção de que ninguém leva o problema a sério. Ligam, atendem, mas depois não há resposta. Às vezes até respondem "o que é que quer que eu faça?". Isto é inaceitável.", considera

O representante dos Vizinhos em Lisboa acusa a autarquia de fazer medições em horários errados, quando o ruído já cessou. "Há bares, como um que existe na Rua do Forno do Tijolo, com prédios de habitação ao lado, que têm colunas viradas para a rua, o que viola tudo. Ali fazem-se festas à noite, com picos de 84 decibéis, mas quando a Câmara vai medir, é de dia e, claro, já não há ruído."

Outro exemplo é o de "raves" ilegais em Monsanto, que geram "várias queixas ignoradas". "O sistema não funciona. A Polícia Municipal tem uma equipa mínima e sem meios. E há muito pouca fiscalização real.", aponta.

Falta de visão política

A associação ambientalista ZERO, que desde há muito tempo acompanha o tema do ruído excessivo na capital, diz que o retrato "não surpreende". Para Pedro Nunes, especialista em energia e mobilidade da organização, "os resultados coincidem com as nossas próprias medições e com a perceção de quem vive na cidade".

"O ruído aeronáutico é crítico, mas mesmo fora dessas zonas há níveis elevadíssimos de ruído de trânsito", explica. "Os autocarros antigos são ruidosos e poluentes, mas o problema principal é o excesso de automóveis privados", diz, enfatizando que "Lisboa tem um tráfego insustentável."

Pedro Nunes aponta uma "falta de visão política" e a inexistência de medidas estruturais. "Não há zonas de velocidade limitada a 30 km/h, e quando existem, não são fiscalizadas. A velocidade é um fator determinante: carros mais lentos fazem muito menos ruído.", argumenta.

As motas, sublinha, são outro problema sem controlo: "Há muitas alteradas, com escapes modificados, que geram ruídos altíssimos. E ninguém fiscaliza. Recebemos dezenas de queixas sobre isso."

Estratégia nacional chega tarde

Portugal tem agora uma Estratégia Nacional para o Ruído Ambiente (2025-2030), aprovada com anos de atraso, segundo a ZERO , que participou na discussão pública, mas mantém reservas.

"É um passo positivo, mas insuficiente", afirma Pedro Nunes. "Propusemos que o Regulamento Geral do Ruído incluísse o conceito de "excedências", para contemplar situações pontuais - como o ruído das motas - que não alteram a média, mas perturbam gravemente quem vive nas zonas afetadas."

"Imaginemos que só temos duas ou três dessas motas a passar em determinado local, e que por esse motivo, como são casos episódicos, até não fazem ultrapassar o limite de ruído, que é um valor médio. Contudo, essas excedências deviam estar também contempladas na lei, porque elas próprias são um fator perturbador. Como o caso de alguém que está a tentar descansar nesse local em que os limites de ruído até são cumpridos, mas uma vez por hora, ou algo do género, acorda porque passa uma mota dessas", exemplifica.

A associação ambientalista defende uma reforma profunda da legislação, com monitorização regular e penalizações mais rigorosas. "Estamos agora com alguma expectativa no sentido de ela poder trazer algumas mais-valias, de facto, para a contenção destes níveis de ruído urbano, de facto inaceitáveis", destaca Pedro Nunes.

Zonas de silêncio

Os Vizinhos em Lisboa entregaram o relatório completo à Câmara Municipal, aos partidos com assento no executivo, e às juntas de freguesia. As propostas incluem barreiras acústicas, revisão do regulamento municipal, controlo noturno reforçado e limitação de licenças de esplanadas em ruas residenciais.

Segundo as recomendações da Organização Mundial da Saúde, níveis acima de 55 dB(A) durante o dia e 40 dB(A) à noite aumentam o risco de stress fisiológico, distúrbios do sono e doenças cardiovasculares. Ora, este estudo mostra que Lisboa nunca desce abaixo dos 60 dB(A), nem de madrugada.

Com base nestes dados, a associação propõe o alargamento da rede permanente de sonómetros automáticos por freguesia, com dados públicos, a implementação de zonas 30 e redução real de velocidade noturna, a substituição integral das frotas municipais e da Carris por veículos elétricos, a imposição de limite sonoro nas esplanadas e bares: 60 dB até 22 horas e 55 dB depois, a par da criação de "Zonas de Silêncio" certificadas em bairros residenciais.

Paulo Lourenço