Cultura

Laurie Anderson no Porto: "A censura é a mãe das metáforas"

Laurie Anderson na conversa esta manhã no Teatro Rivoli Foto: José Coelho/Lusa

A lendária compositora Laurie Anderson, de 78 anos, atua esta quarta e quinta-feira no Teatro Rivoli, no Porto, em duas récitas exclusivas, e há meses esgotadas, de "X2". Já esteve à conversa com os jornalistas. "Contar histórias é um ato político", disse quando falou de Zohran Mamdani e de Donald Trump.

Há artistas que não pertencem ao seu tempo, dobram-no. Laurie Anderson é uma dessas figuras raras, uma viajante de mundos que ainda não existiam quando começou a experimentá-los. Fala-se dela como uma vanguardista, mas talvez o termo mais justo seja outra coisa: cartógrafa do invisível. O que faz, desde os anos 1970, é desenhar mapas onde a tecnologia se confunde com a emoção, onde a palavra se transforma em ruído e o ruído, por sua vez, em revelação.

No Teatro Rivoli, no Porto, Anderson apresenta "X2", um espetáculo que se anuncia como uma síntese impossível, uma "viagem sonora e visual de duas horas, onde música e imagem correm em direções opostas", explicou aos jornalistas na manhã desta quarta-feira. Como se o tempo tivesse perdido o compasso. Há improvisação, há falhas propositadas, há a presença cúmplice da banda nova-iorquina Sex Mob, liderada pelo trompetista Steven Bernstein. Há, sobretudo, a consciência de que o erro é parte da melodia.


Nascida em Chicago, em 1947, Laurie Anderson formou-se em violino, arte e escultura antes de se lançar naquilo que, na altura, nem sequer tinha nome: "performance art". Foi professora de arquitetura egípcia, e talvez isso explique a sua fascinação pela construção de mitologias e pela ideia de monumento. As suas primeiras performances, em 1973, já traziam a marca do hibridismo: som, palavra, imagem, corpo, tecnologia. Mais tarde inventaria instrumentos impossíveis - o "tape-bow violin", que troca a crina do arco por fita magnética, ou o "talking stick", um controlador MIDI que pode reproduzir qualquer som. Nada em Anderson é apenas forma; tudo é linguagem.

O Mundo descobriu-a em 1981, com "O Superman", um tema de seis minutos que soava a meditação sobre o vazio contemporâneo e que, ironicamente, se tornou um sucesso pop, chegando ao segundo lugar das tabelas britânicas.

Foi o início de uma relação complexa com o mainstream: a artista do underground que entrou pelas casas adentro, a experimentadora radical que acabou a dialogar com Peter Gabriel e William S. Burroughs, Brian Eno e Philip Glass, Lou Reed e o Kronos Quartet. Anderson sempre recusou escolher um lado. É uma artista de transição, ou talvez de tradução - entre linguagens, épocas, suportes.

"X2", a peça que agora apresenta no Rivoli em duas récitas exclusivas e há muito esgotadas, é uma expansão de "Big science", o seu primeiro álbum, editado em 1982. Na peça, Anderson reconfigura a memória: o passado torna-se matéria viva, e o espetáculo, uma espécie de arqueologia do som.

"As imagens não estão sincronizadas com a música", confessou em conferência de imprensa, quase divertida com o absurdo. "É assim que a vida acontece". Há nesta frase uma espécie de programa artístico: a recusa da linearidade, a convicção de que o Mundo é um conjunto de fragmentos que só ganham sentido no movimento.

"Energia fresca em Nova Iorque"

Durante a conversa no Porto, a artista de 78 anos falou também de política, de Donald Trump, de raiva, de como é difícil participar num debate quando tudo muda "de quinze em quinze minutos". Mas conta que o facto de palavras como "feminino" ou "equidade" terem desaparecido dos documentos federais pode abrir uma nova porta na criação: "A censura é a mãe de todas as metáforas".

Falou de um novo ativismo, mais tático, menos performativo, evocando Zohran Mamdani, a nova sensação política da esquerda democrata, eleito "mayor" de nova-iorquino e que representa, para Laurie Anderson, "uma energia fresca na cidade de Nova Iorque". Disse que esta capacidade pública de resistência faz com que as coisas possam ser diferentes.

Na conversa abordou também a tecnologia e inteligência artificial: "A tecnologia não é má, é fantástica - mas é preciso saber usá-la." Disse isto sem medo, sem o moralismo habitual. Apesar de reconhecer que a tecnologia "está a roubar o trabalho de pessoas. Tenho uma amiga que perdeu todos os direitos sobre a sua voz que agora está por aí a ser usada".

Para Laurie Anderson, a tecnologia é, se bem utilizada, apenas mais uma extensão da voz. Sobre as suas vozes gracejou e disse que Lou Reed (1942-2013), com quem esteva casada desde 2008 até à morte do artista, "gostava especialmente de uma voz que fazia de um homem autoritário. Interpretar essa voz dá-me uma outra consciência sobre como era estar no seu papel", contou aos jornalistas.

Há nela a consciência de que arte e vida são inseparáveis, de que "contar histórias é um ato político". O seu cinema ("Heart of a dog"), as suas colaborações, as suas invenções sonoras, tudo parece nascer da mesma urgência: comunicar, mesmo quando a comunicação parece impossível.

No fim, talvez Laurie Anderson seja isso: uma contadora de histórias num mundo que já esqueceu como se escuta. Quando esta quarta e quinta-feira, às 21.30 horas, subir ao palco do Teatro Rivoli, entre luzes dessincronizadas e sons que se desfazem, o público verá não apenas uma artista, mas uma memória viva da vanguarda - alguém que continua a provar que a tecnologia pode ter alma e que o silêncio, às vezes, é a forma mais radical de música.

Catarina Ferreira