A BBC vive hoje uma das suas maiores crises de identidade e de legitimidade. Em poucos dias, a demissão do diretor-geral (que não é jornalista) e da diretora de informação, na sequência do memorando Prescott, que denunciava a adulteração das declarações de Trump antes da invasão do Capitólio, transformou este (grave) problema num debate (inter)nacional sobre imparcialidade e cultura institucional, com reflexos no futuro do serviço público de média, assim como na importância do jornalismo.
Acusando a BBC de enviesamento político e de manipulação na edição de um discurso de Donald Trump, o relatório Prescott não surgiu de forma isolada. Houve já outros documentos, como Wilson Report (2005) e o Tait Report (2007), que apontavam para a existência de um "consenso liberal" dentro do operador público, recomendando que tal tendência fosse travada. Esses relatórios, porém, foram amplamente ignorados. Desta vez, a imprensa interessou-se pelo tema e concedeu-lhe amplo destaque. "The Daily Telegraph" titulou: "Exclusive: BBC doctored Trump speech, internal report reveals".
A polémica alastrou rapidamente a outros média e às redes sociais. E ganhou amplitude internacional, acentuada quando Donald Trump veio dizer que, a 6 de janeiro de 2021, tinha proferido um discurso "lindo" e que o trabalho da BBC fez "parecer radical" o que dissera. Por isso, queria ser "compensado adequadamente", ameaçando pedir mil milhões de dólares de indemnização. As demissões de dois dos principais responsáveis da BBC não foram suficientes para estancar a polémica.
Um dos projetos editoriais mais críticos tem sido "The Spectator". Na edição desta semana, descreve o operador público como uma instituição "em negação imbecil", dominada por um "liberalismo progressista" e incapaz de reconhecer críticas legítimas. Em contrapartida, no site The Observer, Stephen Armstrong defende que, apesar dos problemas, a BBC continua a ter um papel maior, assegurando que fechar ou enfraquecer a instituição seria pior do que os erros cometidos. Estes são dois exemplos do ataque e da defesa atualmente em curso.
Ora, convém ter em conta que o debate sobre o futuro da BBC não é apenas sobre imparcialidade e princípios de governança e de transparência. É isso, mas é mais. É sobre o valor dos operadores públicos em contextos de progressiva fragmentação mediática, crescente desinformação e luta pela desintermediação. A BBC precisa de se reformar, mas precisa (muito) de ser defendida. Tal como o jornalismo. Essa defesa hoje implica corrigir falhas e preservar um espaço essencial para a construção de uma esfera pública plural e democrática.