Praça da Liberdade

A linha que não podemos transpor

Os acontecimentos que, há uma semana, voltaram a colocar Portugal no mapa das atividades da extrema-direita europeia exigem uma reflexão que vá muito além do ciclo mediático. Não são episódios isolados, nem meras excentricidades de grupos marginais: representam um sinal preocupante de erosão cívica e de degradação das fronteiras que, numa democracia madura, deveriam manter-se absolutamente intransponíveis.

Num fim de semana, realizaram-se no concelho onde resido e do qual sou orgulhosamente natural, a Maia, dois eventos que partilham traços comuns e profundamente inquietantes: um festival organizado por uma estrutura associada ao universo neonazi internacional e um congresso de um movimento supremacista que tem promovido discursos hostis contra imigrantes, mulheres e pessoas LGBTI+. Não se trata de alarmismo. Trata-se de constatar que há bandeiras, símbolos, retóricas e estratégias que a história tratou de desmascarar e que não podem ser reabilitadas por via da normalização quotidiana.

Tão ou mais perturbador do que a sua realização - por si só suficientemente grave - foi a presença pública, física ou digital, de responsáveis políticos que escolheram não apenas assistir, mas conferir, direta ou indiretamente, legitimidade a estas iniciativas. Quando representantes eleitos cruzam a fronteira que separa a divergência política da cumplicidade com discursos de ódio, algo de estruturalmente grave se altera na perceção coletiva do aceitável.

A liberdade de expressão e o direito de reunião são pilares inegociáveis da democracia. Mas nenhum direito pode ser manipulado para dar cobertura ao incitamento à violência, ao ódio ou à discriminação. A Constituição é clara: a dignidade humana, a igualdade e a rejeição de qualquer forma de supremacia são princípios fundadores do nosso pacto civilizacional. Quem relativiza estes princípios não está a defender a liberdade, está a corroê-la.

Importa, por isso, ser frontal: não podemos permitir que espaços públicos ou privados sejam instrumentalizados para promover agendas que negam os direitos fundamentais de outros cidadãos. A neutralidade perante o ódio não é neutralidade, mas, sim, permissividade. E a permissividade é terreno fértil para fenómenos que tantas democracias, no passado, pagaram demasiado caro para compreender.

Portugal tem sido, ao longo de décadas, exemplo de convivência pacífica, respeito pela diversidade e compromisso com a liberdade. Essa é uma herança que não pode ser tomada como garantida. Requer vigilância, responsabilidade e um sentido de limite que não hesite em traçar linhas vermelhas quando a dignidade das pessoas está em causa.

Esta não é uma batalha partidária. É uma batalha moral, cívica e institucional. E é também um teste à nossa maturidade democrática: saberemos resistir à banalização do intolerável? Saberemos afirmar que nem tudo pode ser enquadrado como "opinião política"? Saberemos defender que há valores, como a igualdade, a liberdade ou a dignidade humana, que não são negociáveis?

A resposta tem de ser inequívoca. Porque o mais perigoso nos extremismos nunca é o barulho inicial, mas o silêncio que lhes permite crescer.

João Torres