Entrei quando uma mulher dizia algures no planeta, pelo ecrã de vídeo:
- Ele pegou na faca e foi aí que ameaçou cortar os pulsos e começou a chorar. Fiquei com ele até de manhã. Ele já fez cartas de suicídio.
- Tem medo ou não do senhor arguido?, perguntou o juiz.
- Devo ter, não é? Quando isto se resolver, não sei como ele vai reagir.
A mulher contava o inferno com Matheus, o homem magrinho no banco dos réus. As provas dela eram a cara pisada, roxos pelo corpo, cuspidelas, pescoço apertado. Ele trancava-lhe a porta, tirava-lhe o telemóvel, a carteira. Até que a mulher chegou a esta frase espantosa:
- Era discussão por motivo de ciúme. Era sempre o mesmo. Não tínhamos problema de relacionamento.
Houve uma vez que ela, com o nervoso, urinou o colchão.
- Nesse dia eu percebi que ele tinha ido jantar com uma menina. Mentiu. Eu me senti traída, muito ansiosa.
- Quanto a urinar: foi pelo peso da traição ou foi a discussão e a agressão?
- Acho que foi tudo.
Matheus escutava, a cabeça presa ao pescoço de peru, o nariz fino como um aileron de automóvel quitado. O juiz mandou-o sair porque ia entrar uma testemunha que tinha de estar à vontade para falar. Espantosa segunda revelação deste julgamento: era outra vítima de Matheus. Sara, estudante, frágil e branca como papel. A menina.
- Este senhor arguido foi seu namorado?
- Pode-se dizer que sim, infelizmente.
- Viveu com ele?
- Não.
- Conheceu-o bem?, perguntou a procuradora.
- Não conhecemos realmente alguém, não é? Eu sou uma pessoa humanista. Eu vejo sempre as pessoas pelo lado bom.
Matheus, contou a rapariga, sempre foi "extremamente ciumento".
- Sou uma pessoa que reage pelo silêncio. Ele gritava mentirosa, falsa, puta, todas as asneiras. Sempre que havia uma discussão eu acabava a chorar em pânico. Eu sou uma pessoa muito cautelosa. O que tem de ser acontece. Mas tenho medo de perder a vida, não é?
Era dupla a manipulação de Matheus: dizer que matava ou que se matava ele. É o seu "modus operandi", pelos vistos.
- Já me chegou a mandar fotos em cima de prédios a dizer que se ia atirar.
A 17 de Julho de 2023, ela estava a estudar para os exames, ficou até às três ou quatro da manhã em casa dele. Por causa de uma questão anterior (alguém oferecera a Sara um carro ficcional no jogo GTA, Grand Theft Auto, onde, como jogadores, podemos roubar, matar e morrer à vontade), Matheus tapou-lhe o nariz e a boca e, com a outra mão, puxava-a pela nuca.
- Eu pensava: OK, o que é que é isto que está a acontecer?
Durante cinco horas, cinco horas.
- Eu já estava sem ar, baralhada, depois tentou sexualmente... apalpou-me, tentou dar beijos, deu-me socos, empurrei-o com o meu pé na zona pélvica. Ele retribuía o que eu fazia, com violência. Estrangulou-me com uma toalha. Não reagi mais, porque ele tinha três facas, duas delas facas grandes de cortar carne. Trancou-se comigo na casa de banho, sem t-shirt e tentou dar-me um abraço. Depois pôs-se de joelhos e começou a chorar, chorar, chorar.
Agora era Sara quem chorava, chorava, chorava no tribunal.
- A senhora pensou que ia morrer nessa noite?, disse a procuradora.
- Até lhe perguntei se me ia matar. Eu já nem sabia onde é que estava. Não sabia se ainda estava neste planeta.
Mas estavas, Sara, em concreto Portugal. Em 2025, até Novembro, 24 mulheres mortas, 21 delas em contexto de relação. E outras 40 tentativas de homicídio. É neste planeta que estás.
O autor escreve segundo a antiga ortografia