Opinião

Conceição, Ermelinda e um triste fim de vida

Uma das nuances bonitas deste ofício é que, com alguma frequência, as histórias que contamos num dado momento passam a ser também um bocadinho nossas e assim se tornam impossíveis de esquecer. No meu caso, lembro-me muitas vezes de Conceição e Ermelinda, duas anciãs que conheci na reta final de 2022. Conceição tinha 90 anos, Ermelinda 94, Conceição tinha sido padeira, Ermelinda trabalhou no campo, Conceição tinha sete filhos, Ermelinda três. Ambas estavam internadas no Hospital de São Miguel, em Oliveira de Azeméis. Não por não terem condições para terem alta - ainda que não lhes faltassem complicações de saúde -, mas porque nenhum filho, neto ou outro qualquer familiar tinha disponibilidade para as acolher. E porque não havia lugar no lar para elas. Ainda hoje fico com o coração pequenino quando me lembro de Conceição a desabafar que nunca pensou que com tantos filhos ia acabar assim. Ou quando penso nos olhos-mar de Ermelinda a encherem-se de lágrimas enquanto desculpava os filhos. "Eles são bons, não me vêm buscar porque não podem", dizia. Na altura, a responsável pelo serviço social explicou-nos que se deparavam com um número crescente de pessoas que no momento da alta não se mostravam disponíveis para acolher os seus familiares idosos. Uns por não se conseguirem adaptar ao novo estado do doente, outros por estarem cansados, outros por diferendos familiares. Nesse ano, contabilizavam-se, em todo o país, 1048 internamentos inapropriados. De lá para cá, o número mais que duplicou. O assunto voltou a ser notícia esta semana. Sendo que, tradicionalmente, os internamentos sociais aumentam em épocas festivas, o que também diz qualquer coisa sobre um certo lado indizível do ser humano. E se é certo que não é possível legislar a natureza humana por decreto - ainda que a aposta em políticas públicas que promovam a intergeracionalidade e a literacia para a longevidade possam ajudar a recordar a importância de cuidar de quem cuidou de nós -, é mais difícil compreender que, ano após ano, nada de relevante seja feito para mitigar o aumento exponencial de internamentos sociais nos hospitais. Aliás, as respostas sociais para estes casos têm caído a olhos vistos. Porquê? A explicação é multifatorial, mas não há como fugir à falta de vontade política para fazer deste um problema central da governação. Talvez porque, ao contrário de outros, o tema é pouco dado às perceções e aos proveitos eleitorais. E portanto assim seguimos, indiferentes aos milhares de Conceições e Ermelindas que se acumulam em hospitais por todo o país. Sem pensar sequer que, se tudo correr bem, também nós lá chegaremos. E que um dia podemos ser nós a viver os últimos dias da nossa vida sem rede e sem lar, profundamente sós.

Ana Tulha