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A pergunta

"Pai aos 50" é uma crónica semanal assinada pelo escritor Joel Neto.

Uma criança atravessa o corredor lá de casa, estende a mão para um velho baú que já ninguém abre há muito tempo, agarra num esticador rígido deixado entre as variedades e empunha-o no ar, observando-o de um lado e do outro:

- O que é isto, pai?

Aquilo que lhe respondermos poderá marcá-lo para sempre:

- É uma espada para salvar o universo.

- É o apontador com que um professor pode explicar os seus powerpoints.

- É um esticador rígido para pendurar uma pequena cortina.

- Cala-te e vai arrumar isso.

Talvez não venha a ter qualquer importância, a resposta. Mas nunca se sabe. A maior parte das coisas que guardamos da infância apareceram-nos assim, de lado nenhum - num momento banal, por acaso, sem anúncio. Muitas vezes nem sequer estávamos a falar com os nossos pais: guardámos apenas um suspiro, uma palavra, um sorriso, uma inércia de outra pessoa qualquer, num momento qualquer (até um som, uma imagem, uma natureza morta, um objecto), e, quando ele foi preciso, voltou para nos ajudar a explicar o Mundo.

Mas, quando estávamos com os nossos pais, a probabilidade de isso permanecer era maior ainda - muito maior. De que tamanho é a Terra, na verdade, no instante em que um filho o pergunta ao pai:

- O que é isto?

Uma pessoa podia esperar uma vida inteira pela oportunidade de responder a essa questão. Tudo o mais se resume a biologia.

Na pergunta "O que é isto, pai?" alojam-se anos de aquisição, anos de dúvida, anos de medo, anos de esperança. Foi para ela que os fizemos vir ao Mundo. Foi para ela que lhes mudámos as fraldas, e os aconchegámos na hora de dormir, e acorremos quando tiveram um terror nocturno, e os ajudámos a equilibrar a bicicleta, e lhes tirámos as rodinhas. E também é por isso que sonhamos com o dia em que virão às nossas casas, com os seus próprios filhos, para um jantar de domingo, uma noite de Natal, uma despedida.

Responder a essa pergunta, "O que é isto, pai?", é a grande razão por que nós próprios chegámos aqui. Permite-nos dizer-lhes: vai e reinventa. Ou: vai e sistematiza. Ou: vai e cumpre - sobretudo, cumpre. Ou mesmo: está quieto, que eu quero ver o Benfica.

Permite-nos abrir-lhes uma possibilidade (ou fechá-la para sempre, nos casos infelizes), e ainda mais: permite-nos dar-lhes a medida da nossa ignorância, na expectativa de que possam acrescentar-lhe uma aprendizagem que traga uma nova perspectiva não só à espécie, mas à própria genética.

- O que é isto, pai?

Nenhuma pergunta é apenas uma pergunta, nenhuma resposta é apenas uma resposta. Uma boa pergunta é capaz de reconstruir o Mundo. Uma má resposta pode aniquilá-lo para sempre.

Joel Neto