É muito estúpida esta nossa mania de só darmos valor a uma coisa quando nos vimos privados dela. Presumo que 98,9% das pessoas que se aventuraram a ler esta crónica não estão a sofrer com os dentes, mas, apesar disso, não se sentem felizes por esse magnífico bem-estar.
Só após uma série de dias a dormir mal e com a vida estragada por uma arreliadora dor de dentes é que damos graças a Deus por eles voltarem a remeter-se ao anonimato da sua função de mastigarem os alimentos, abstendo-se de se manifestarem no intervalo das refeições.
O nosso dia a dia está recheado de confortos que menosprezamos, classificando-os de pequenos, mas que nunca estiveram ao alcance dos nossos reis.
Com os cofres a abarrotar de ouro do Brasil, o D. João V pôde mandar construir um palácio tão rico e imponente como o de Mafra, mas quando calhava tomar banho tinha de esperar que a criadagem aquecesse a água, enquanto a nós basta-nos rodar as torneiras, regular a temperatura e já está.
E o D. Carlos foi desta para melhor sem nunca ter tido a oportunidade de, através do simples ato de puxar o autoclismo, fazer desaparecer as suas porcarias, quase que por magia, num eficiente sistema de saneamento básico, que as trata antes de lançar ao oceano que ele tanto apreciava, e sem o mínimo prejuízo para as espécies marítimas que estudou e desenhou.
A energia é outro luxo que só valorizamos quando não o temos. Estamos tão habituados a chegar a casa, carregar no interruptor e fazer-se luz, que só quando ela falta nos apercebemos que a comida que está no frigorífico se vai estragar, não é possível cozinhar, ver televisor, ler (à luz da vela é penoso), aquecer a casa ou tomar banho quente - e estamos condenados a obedecer ao horário imposto pelo Sol.
Só quando chove damos pela falta do guarda-chuva. Só quando uma primavera sorridente sucede a um inverno frio e chuvoso é que redescobrimos o prazer de estar numa esplanada a ler o JN ou a passear a pé pelas margens do Douro.
A minha ideia inicial era escrever sobre o espetacular filme da série B, repleto de intriga, ação, suspense, traição e inesperadas reviravoltas em que se transformou a vida interna do PS. Mas depois dei por mim a pensar na felicidade que é estar de folga (apesar de ter de escrever esta crónica), sem dores de dentes, com água, luz e gás a funcionarem - e mudei de ideias.
Decidi partilhar este bem-estar, que também se deve ter apoderado do primeiro-ministro. A execução orçamental revelou-se melhor que o esperado. O regresso aos mercados correu muito bem. As pitonisas da economia começam a acreditar que estamos no ponto de viragem da crise. E o principal partido da Oposição transformou-se num apaixonante e autofágico reality show, que desvia desviando os holofotes das travessuras e asneiras do dr. Relvas.
A vida finalmente parece correr bem a Passos Coelho. Se não lhe doerem os dentes, deve andar feliz da vida.