A manchete da edição de ontem do JN vale mais do que mil palavras. Recordo-a, de forma sucinta: o Banco Alimentar do Porto detetou mais de 1500 pessoas (cerca de 500 famílias) que, aproveitando um falha no sistema de distribuição de alimentos, estavam inscritas em várias instituições, conseguindo, assim, receber em duplicado, em triplicado ou mesmo em quadruplicado o que deveriam receber apenas uma vez. Trata-se, claro, de uma irregularidade que prejudica o conjunto dos mais necessitados, por sobrar menos para distribuir por cada vez mais pessoas que procuram estas instituições de solidariedade. Mas, por muito que esta fraude possa ser criticada, há perguntas, todas difíceis, com que o caso nos confronta. Podemos apontar o dedo às pessoas e às famílias que recorrem a este expediente? A solidariedade vale mais do que o desespero? Quem está em condições de atirar a primeira pedra?
O presidente do Banco Alimentar do Porto, Rui Leite de Castro, entende tratar-se de "uma questão de justiça", uma vez que a intenção é "ajudar por igual todos os que precisam". É verdade. Sucede que também é verdade o que deixa entender a notícia: são casos de fraude, sim, mas são casos de fraude praticados por pessoas desesperadas que tentam armazenar todos os alimentos que podem, porque não conseguem aceder a eles de outra forma. Não têm dinheiro. E têm bocas, as deles e as dos filhos, pelo menos, para sustentar. Mais: hoje, o cabaz alimentar entregue a cada beneficiário é de oito quilos por mês, bem abaixo do desejável. Mais ainda: o número de pedidos tem aumento de forma "brutal" (adjetivo de Rui Leite de Castro sustentado por números perturbantes - em três anos, o número de famílias apoiadas passou de 9 mil para 16 mil). E mais ainda: a quantidade de alimentos doada caiu drasticamente (de 6305 toneladas, em 2011, para 4504, em 2013). Não percamos o fio à meada: estamos a considerar apenas o universo em que atua o Banco Alimentar do Porto.
Tenhamos a noção do seguinte: no curto prazo, esta equação não tem solução. O rendimento dos portugueses tem sido sorvido a galope por um Estado guloso e insaciável, incapaz de equilibrar custos e proveitos. Em 2013, a parcela dos nossos salários que ficou nos cofres estatais furou a barreira dos 40% (41,1%, para ser exato), de acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE). É uma coisa colossal, se vista em termos médios. E é uma coisa que está bem para lá do aceitável, se olharmos para as classes mais desfavorecidas.
Este tombo para a miséria de milhares e milhares de portugueses não se recupera com piedosas medidas, como a subida do salário mínimo. Para muitos, não se recuperará jamais. Quem tem fome não tem escolha. É menos livre. O som do estômago a roncar, clamando por comida, é demasiado baixo para pôr certas consciências a roncar também. É por isso que a manchete de ontem do JN vale mais do que mil palavras.