Miguel Cadilhe

Os pequenos accionistas do BES

Ao longo de 40 anos, para não ir mais longe, os pequenos aforradores tiveram sempre, ou quase sempre, uma especial protecção em Portugal. Trata-se de uma tradição ou princípio geral que decorre de simples e enraizadas considerações de natureza social e política.

Temos vários exemplos dessa discriminação a favor dos pequenos: a lei das indemnizações,subsequente às nacionalizações de 1975, estabelece taxas de juro crescentes emfunção dos montantes a pagar a cada indemnizando; as leis das reprivatizações,de 1988 e 1990, consagram uma quota-parte para os pequenos subscritores;junto do BdP, o "Fundo de Garantia de Depósitos" abriga os pequenosdepositantes até 100 mil euros; junto da CMVM, o "Sistema de Indemnizaçãoaos Investidores" abriga os pequenos investidores até 25 mil euros;etc.

O aumento de capital doBES...

Aquele princípio geral deprotecção ou benefício do pequeno aforrador foi absolutamente desprezadona chamada "resolução" da crise do BES. Os pequenos accionistas dizem-semaltratados pelo Estado e pelas suas instituições. Recapitulemos. Em 9 deJunho, o BES termina um aumento de capital reservado a accionistas: mais 1 607milhões de novas acções (aumento de 40%), ao preço de 0,65 euros por acção. Ocorrespondente "prospecto", enorme de 375 páginas, inclui avisos e reparos quea CMVM mandou, e bem, lá colocar, mas o pequeno accionista não é, claroque não é, o melhor destinatário e leitor desses cuidados. Logo a seguir, o BEScai no colapso e na lama. Em 3 de Agosto, numa operação-relâmpago, fulminante,coactiva, o BdP extrai do BES o "Novo Banco", NB, e entrega-o ao "Fundo deResolução", FdR, por contrapartida de uma injecção de capital de 4,9 milmilhões de euros. Na imputação patrimonial, o NB fica com a carne, ao passo queo banco remanescente, o "BES em liquidação", fica com os ossos, fica com umActivo que será provavelmente inferior ao Passivo e, portanto, fica a caminhoda falência: todos os accionistas do BES original poderão perder tudo.

E os pequenos accionistas?A constatação é tremenda, os pequenos accionistas não foram protegidos,não transitaram, sob uma qualquer forma, para o NB (que, sublinhe-se, é umacriação do Sector Público), nem transitaram para outra entidade pública. Foramcruamente remetidos para a massa falida ou em liquidação.

Como foi possível osacrifício dos pequenos accionistas?

Pergunta-se, por que razãonão foram protegidos os pequenos accionistas? Ao menos aqueles queinvestiram no fatídico, imperdoável, aumento de capital do BES de há semanas?Não podendo eles ficar como accionistas do NB (a lei "europeia" manda que oúnico sócio do NB seja o FdR), por que razão o Estado não concebeu uma soluçãoadequada, legítima, razoável, coerente com o dito princípio tradicional e geralde salvaguarda dospequenos aforradores?

A senhora ministra dasFinanças (cito de memória) sentenciou que investir em acções é um riscode que todos, grandes e pequenos, devem estar cientes. Sim, a sentença é antigae é, em geral, justa. Mas, atenção, é uma sentença relativa (os grandes sabemmuito mais do que os pequenos). E, na circunstância, não foi muito apropriadoalegar a sentençaporque isso flagelou, aindamais, os pequenosinvestidores e pode levá-los a concluir queerraram ao acreditar e confiar no escrutínio último das autoridades. Alémdisso, houve (não deveria ter havido) declarações de altos responsáveispolíticos, cujas palavras cuidadas e escolhidas foram naturalmente bemescutadas pelos pequenos investidores.

Por consequência, o envolvimentodo Sector Público atingiu elevado grau em todo este caso, quer no acto de"resolução", em si mesmo, quer no adjacente acto do aumento de capital, quernas precedentes diligências de supervisão. Esse é o ponto. E é o pontoindissociável da protecção do pequeno aforrador.

Estamos a tempo defazer o que tem de ser feito?

Por conseguinte, os pequenosaccionistas do BES foram pisados em contexto regulado e finalmentedeterminado pelo Estado institucional. A que propósito e sob que conceito dejustiça os pequenos accionistas foram excluídos de uma solução emsimultâneo com a criação do NB? O regime de "resolução" pública das crisesbancárias não há-de ser uma manta cega, exclusiva, absoluta. Se eu (seja-meconsentida esta breve veste) estivesse no lugar de quem tem o poder de repararos estragos provocados, não descansaria enquanto não encontrasse uma soluçãode lei que permitisse salvaguardar os pequenos accionistas do BES (adefinição de "pequeno", para o efeito, poderia vir por analogia com os casosque mencionei acima). E procuraria atribuir-lhes um preço por acção quefosse justo, nunca inferior ao preço do último aumento de capital.Atribuir-lhes-ia, como? Aí reside um óbice, que é, antes de mais, de ordemjurídica e requer imaginação e segurança conceptual, pelo que haveria de ouvirbons juristas. A construção da resposta caberia tecnicamente, e em primeirolugar, ao BdP e à CMVM. E caberia politicamente ao Governo e ao Parlamento.Seria preciso aprovar um mini-quadro legal. Uma nova lei que, por exemplo - eavanço com uma sugestão -, facultasse aos pequenos accionistas aopção de vender ao NB as acções do BES. Estas passariam, assim, a figurarno Activo do NB, com a inerente imparidade. Sei bem que esta é uma hipótese desolução que certamente não agradará aos bancos contribuintes do FdR. Porém,pergunto: o dinheiro do aumento de capital dos pequenos subscritores,esse onde está? Pois não é verdade que está no NB?

Redação