A crise dos refugiados na Europa

De Blair a Aylan, o fruto da guerra

Yannis Behrakis/Reuters

A última leva na Europa A guerra no Iraque e, antes disso, o Afeganistão, criaram o Estado Islâmico. E o Estado Islâmico criou o medo do terror. Sete milhões de sírios estão hoje deslocados ou refugiados.

Dedicar o arranque de um artigo sobre refugiados a Tony Blair parecerá deslocado. Não o será tanto assim. O antigo primeiro-ministro britânico - o mesmo que apareceu numa fotografia sorridente, entre George W. Bush, José Maria Aznar e Durão Barroso, com as montanhas dos Açores em pano de fundo, no ido dia 16 de março de 2003 - admitiu que a decisão saída daquela cimeira açoriana esteve na origem do nascimento do autoproclamado Estado Islâmico (ISIS em inglês, Daesh em árabe). Ali começou efetivamente a guerra no Iraque, que levaria à queda do regime sunita de Saddam Hussein, mais tarde enforcado aos olhos do Mundo inteiro por não abrir mão de alegadas armas de destruição massiva que nunca apareceram.

Ali começou efetivamente o borbulhar da rebelião, com nomes que foram evoluindo e multiplicando-se até gerar um em específico: Daesh, cujas origens, datadas de 1999, sob outro nome, se confundem com a al-Qaeda a quem prestou fidelidade em 2004. Al-Qaeda esta também visada pelas coligações internacionais, em nome da luta contra o terrorismo do pós 11 de setembro, mas aí mais longe, no Afeganistão e no Paquistão. Uma rebelião sunita, que cedo transpirou fronteiras para a Síria, país maioritariamente sunita controlado por um governo xiita - o de Bashar al-Assad, apoiado pelo Irão xiita. Uma rebelião alimentada por estados sunitas, aliados dos aliados ocidentais, como a Arábia Saudita e as monarquias do Golfo, com o Qatar à cabeça, esses que suam petróleo. Na ressaca dos sangrentos atentados de Paris, Bashar al-Assad repescava Tony Blair: o Daesh "não começou na Síria. Começou no Iraque e antes disso no Afeganistão".

A rebelião dispersou-se e gerou células com objetivos diferentes, como as que se levantaram contra o regime sírio e receberam em troca uma guerra civil e estão agora a ser diretamente combatidas pela Rússia, apoiante de Assad. E apoiadas, diz-se, pelo Ocidente, opositor de Assad, com a ajuda desinteressada da Turquia, ansiosa por se livrar de um vizinho incómodo. A amálgama é inextricável e o crescendo de violência imparável e sem alvos precisos. Ao ponto de a al--Qaeda, decapitada de uma liderança forte, se distanciar do filho mal--amado no início de 2014, oito anos depois de este se ter renomeado "Estado Islâmico do Iraque", um ano depois de ser anunciado como "Estado Islâmico do Iraque e do Levante" (já com a Síria), quatro meses antes de se proclamar "Califado". E os refugiados? As estatísticas históricas são claras: as vagas de refugiados acertam nos conflitos.

A primeira grande vaga da era moderna, em 1992, deu-se um ano após o início das guerras que implodiram a Jugoslávia (o Kosovo é, ainda hoje, a segunda nacionalidade dos requerentes de asilo na Europa). A segunda, menos pronunciada, é de 2002, um ano depois de arrancar o conflito no Afeganistão na sequência dos atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos e em plena efervescência iraquiana (o Afeganistão, o Iraque e o Paquistão estão no Top 10 dos países de origem dos refugiados e requerentes de asilo, com 3,4%, 5,2% e 10%, respetivamente). A terceira vaga começou em 2011, com o arranque das hostilidades sírias.

E explodiu em 2014/2015, com o avanço da jiad do autoproclamado Estado Islâmico, num inferno que já fez mais de 220 mil mortos só na Síria. Calcula-se que 34% dos cerca de 22 milhões de sírios estejam refugiados e deslocados, segundo contas do Alto-Comissariado das Nações Unidas para o Refugiados (ACNUR). E são hoje quase um quinto dos requerentes de asilo na Europa (18,5%, segundo dados do primeiro semestre de 2015). O resto das contas dos requerentes de asilo inclui o Sudão, o Sudão do Sul, a República Democrática do Congo, a Nigéria, a Turquia e, dado curioso e fora de toda a crise, a Colômbia. Apenas mais um dado para concluir: em 2014, o número de deslocados internos e externos devidos a conflitos no Mundo atingia os 60 milhões... Aylan Kurdi. O nome já está na Wikipédia e a imagem ficou gravada na retina do Mundo. Camisola vermelha, calças azuis, o ar angélico de quem apenas dorme na areia. Tinha três anos. Era sírio.

Era curdo. Era irmão de outra vítima e filho de uma mulher demasiado nova. Sobrou o pai para contar tudo. Que são de Kobani, tomada pelos combates com o Estado Islâmico. Que trocaram o medo do terror pelo risco da morte. Que o Canadá era o sonho. Foi a história que humanizou o maior fluxo de refugiados de que o Mundo se recorda. A história que ameaça desaparecer por detrás da sala de espetáculos Bataclan, em Paris, transformada em sangue pelo Estado Islâmico. Sangue. O mesmo.