"Inconstitucional", "terrorista", "promotor de corrupção", "esquema pa-ra sacar dinheiro aos contribuintes e encher os bolsos do Estado esbanjador". Estas são algumas das críticas e acusações lançadas por vários responsáveis da sociedade civil ao novo Código da Estrada. Na base da polémica e da forte contestação estão, sobretudo, duas grandes alterações que o documento introduz o aumento significativo do valor das coimas e a obrigatoriedade do seu pagamento no acto da aplicação da multa - beneficiando de uma redução até 50%.
Ao JN, o líder da Associação dos Cidadãos Automobilizados, Manuel João Ramos, condenou a inexistência de discussão pública do documento. "É possível imaginar que Bagão Félix (ministro das Finanças) teve alguma coisa a ver com a preparação deste novo Código da Estrada", disse.
"Tudo isto foi mal conduzido. Não houve estudos de impacto desta medida. Temo que o nível de conflitualidade entre cidadãos e Estado aumente, assim como o nível de corrupção dos polícias, bem como o nível de disfuncionalidade da Direcção-Geral de Viação a tratar de todos os problemas decorrentes de situações destas", afirmou Manuel João Ramos.
"Acto violentíssimo"
Quem também não concorda com o princípio do "pague agora e conteste depois" é o jurista António Marinho, que classifica esta decisão de "terrorismo do Estado" e "acto violentíssimo sobre o cidadão". "Ninguém pode ser punido e obrigado a pagar sem a necessária fixação da culpa. É preciso primeiro averiguar a culpa, seja ela na forma dolosa ou negligente", defende o antigo presidente da Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados.
António Marinho considera, também, que "o novo Código vai aumentar as pressões sobre os agentes da autoridade e fomentar a corrup- ção. Não é preciso ser muito esperto para perceber que é isso que vai acontecer". "Vale tudo para tirar o dinheiro dos bolsos de quem trabalha. Os agentes do Estado cada vez gastam mais dinheiro em mordomias. E, para alimentarem os seus séquitos, cada vez nos querem sacar mais e mais", condena o causídico.
A Associação Portuguesa de Direito do Consumo (APDC), pela voz do seu presidente, diz mesmo que "esta nova norma é inconstitucional". Mário Frota considera "ilegal" uma lei que prevê que o suposto infractor pague primeiro, proteste depois, sendo que, se não tiver dinheiro, fica sem carta ou sem carro. "O indivíduo que paga a contra-ordenação, paga logo, assume a culpa e não tem contraditório, um direito que é constitucional", refere o líder da APDC, condenando o facto de o mesmo agente que procede à fiscalização julgar e cobrar os valores.
Estado mau pagador
O bastonário da Ordem dos Advogados, Rogério Alves, reconhece ter muitas dúvidas sobre a legalidade desta medida e diz que, assim, a vida dos cidadãos fica ainda mais complicada. Isto porque, mesmo que se prove a inocência do condutor, a devolução do dinheiro entregue ao Estado vai demorar muito tempo a acontecer, porquanto "o Estado é um mau pagador". Pelo mesmo "diapasão" afina Pedro Domingues, da Associação de Consumidores de Portugal, que admite que o diploma possa estar "ferido de inconstitucionalidade".
O socialista Nelson Baltasar, que participou na comissão parlamentar que trabalhou o novo Código da Estrada, disse que está previsto, na regulamentação do diploma, um desconto até 50% para quem proceder voluntariamente ao pagamento da coima no momento seguinte ao da contra-ordenação. O secretário de Estado da Adminsitração Interna, Nuno Magalhães, explica, por sua vez, que "o condutor tem sempre o direito do contraditório e pode impugnar a contra-ordenação".
Contudo, Manuel João Ramos considera que as alterações ao Código trazem situações de "injustiça social tremenda". "Aumentar o valor das coimas sem atender ao facto das pessoas terem rendimentos muito diferentes introduz uma situação em que aqueles que têm dinheiro e poder podem continuar impunes e os que não têm sofrem as consequências agravadas".