O glamour e a refulgência com que Hollywood cobre os seus embaixadores da perfeição deram, subitamente, lugar a um plateau sombrio, onde as tímidas luzes projetadas apontam todas na direção de armários bolorentos forrados a pecados antigos. A dimensão do escândalo sexual que abalou a mais mediática e ascendente comunidade artística do Mundo é equivalente à de um gigantesco novelo que quanto mais se desfia mais se parece com um detetor de verdades. A arte imita a vida tanto como a vida imita a arte.
Porventura mais paradigmática do que a cadência com que os predadores sexuais estão a ser expostos é a constatação de que muitas das vítimas, atores e atrizes milionários, planetários, com um real poder de influência, ficaram calados durante décadas. A cultura do silêncio não conhece carismas nem geografias. Ninguém diz nada, ninguém sabe de nada. Até ao momento em que, por ousadia ou acidente, alguém decide dar um passo. A dinâmica que se estabelece depois podia explicar-se assim: primeiro uma mulher, um homem, uma vítima, depois outra, a seguir outra. Até se formar um padrão. Até haver uma história sólida. E não apenas "é a palavra de um contra a do outro". Dele contra a dela. Não raramente, descobrimos que, afinal, toda a gente sabia. Que pululavam cúmplices nesse filme de série B. Descobrimos o pior que há na forma condescendente como olhamos aqueles que exercem de forma arbitrária o poder sobre os outros. Sobre os mais fracos.
Tudo começou quando o produtor Harvey Weinstein foi acusado de assediar sexualmente, e durante largos anos, várias atrizes, entre as quais Angelina Jolie, Ashley Judd e Mira Sorvino. Sensivelmente na mesma ocasião, o presidente dos Estúdios Amazon, Roy Price, apresentou a demissão, por suspeitas da mesma índole; e, há dias, o Mundo ficou boquiaberto ao saber que o talentoso e multifacetado ator Kevin Spacey foi acusado de se ter insinuado sexualmente ao ator da Guerra das Estrelas Anthony Rapp, então com 14 anos. Em ambos os casos, as alegadas vítimas admitiram que a bola de neve provocada pelo escândalo Weinstein foi a fonte de inspiração de que precisavam para contarem a sua história. Para fazerem a catarse emocional.
Entre nós, a formulação de "propostas de teor sexual" passou a ser crime há dois anos, mas o impacto social da lei não é conhecido, apesar de, em 2016, o crime de importunação sexual ter levado à abertura de dois inquéritos por dia. Se em 1989 o assédio sexual no trabalho era maioritariamente da responsabilidade dos colegas, agora são os superiores hierárquicos e/ou as chefias diretas os principais culpados.
O silêncio em Hollywood é tão insuportável como o que se instala num escritório anónimo de Portugal. Na essência, é a mesma forma de domínio, de violência cobarde. Não é feita em casa, não recorre a mocas com pregos, mas crava marcas profundas. A cultura da permissividade não pode ser uma desculpa. Nem as tradições de uma sociedade machista. Seja qual for o palco. Independentemente dos atores.
*SUBDIRETOR