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As piores saudades são as dos momentos que nunca vivemos. Quando o amor se cruza com a paixão e sentimos que podemos ter chegado a casa, que nunca mais teremos de nos ir embora, é nesses momentos que as saudades doem mais.
São saudades do futuro, que morreram no papel da imaginação, sem nunca terem voado para os domingos de sol na casa dos tectos altos virada a poente, os cães a brincar no jardim, os livros e os discos da nossa vida a falar connosco por entre os silêncios dos dias, porque nem sequer precisamos de conversar.
Quando me apaixonei por ti imaginei tudo, como se tudo fosse possível. Nunca quis papéis de notário nem alianças com os nomes trocados por dentro, nunca precisei de laços exteriores de afecto, bastava-me a tua voz de fita de seda à volta do corpo, o teu braço a proteger-me os ombros, as tuas mãos claras e perfeitas a aconchegar-me o casaco e a ajeitar-me o cabelo antes de sair de casa.
Ao teu lado senti-me sempre protegida. Podia ficar doente, podia ter outra vez 10 anos e pedir-te para me levares ao cinema, podia estar cansada ou triste, que tu, com a delicadeza que nunca conheci em nenhum outro homem me tomarias nos teus braços e cuidarias de mim. Nunca tive medo que me magoasses, me mentisses, me trocasses por coisas sem importância, como tantas vezes os homens fazem com as mulheres, mesmo quando gostam delas. Sempre tive, acima de tudo, um enorme respeito por ti e uma confiança cega e inabalável, porque és igual a mim e quando gostamos de alguém, tudo fazemos para agradar, proteger e mimar, ainda que às vezes não sejamos perfeitos.
Agora, que a vida nos levou para lugares diferentes, visito a casa virada a poente onde os tectos altos e o jardim me aconchegam como um ninho perfeito e tento não te imaginar lá dentro. Sinto-me em casa, aquele lugar escolhido onde todos os objectos me compreendem e os dias de silêncio me fazem acreditar que se pode estar só, sem sofrer de solidão.
Não sei viver sem sonhar. E como é de duas solidões escolhidas que nasce a melhor das companhias, vejo-te a chegar um dia, de surpresa, talvez num domingo cheio de sol, ou numa quarta-feira ao fim da tarde - tivemos algumas quartas-feiras extraordinárias na nossa vida - com um presente nas mãos e um sorriso enorme no coração. Imagino-te a abrir o portão, a falar com os cães como se fossem teus, a abrir-me os braços como só tu sabes e dizer-me ao ouvido que gostas de mim, que não sabes quanto tempo ficas, mas que queres descansar das tuas viagens, porque também precisas de saber se já chegaste ou não a casa.
E eu vou pedir-te que não digas nada, que te sentes a ler e a ouvir música comigo e que fiques o tempo que quiseres, porque se já és dono do meu coração há tanto tempo, então também fazes parte da minha casa, onde todos os objectos se entendem e ninguém precisa de palavras para dizer que está feliz.
