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Joaquim Murale: "A liberdade individual já é uma caricatura"

Joaquim Murale: "A liberdade individual já é uma caricatura"

A cumprir 45 anos de vida literária, Joaquim Murale afirma ter ainda os mesmos sonhos que o levaram a enredar-se pela escrita. O seu próximo livro, "O áspero tempo das marionetas", é lançado a 2 de julho.

Fortemente comprometida com a realidade. Assim continua a escrita de Joaquim Murale, pseudónimo literário de António José Rocha, dominada pela preocupação de intervir no momento atual.

Com uma obra que atravessa a poesia, a ficção e o teatro, Murale diz-se desencantado com o rumo da democracia nas últimas duas décadas, mas confessa ainda não ter perdido a esperança "na humanidade, na sua força e na sua clarividência!"

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Cumpre em 2022 45 anos de vida literária. Que estados de alma se apoderam de si quando olha para trás e analisa este longo percurso?

Quarenta e cinco anos têm um peso significativo numa vida humana. Mas o número de anos transcorrido não me diz muito. Aquilo que, para mim, verdadeiramente conta não é o tamanho do caminho mas as sementes que a vida me permitiu lançar. Olhando assim, e tomando em conta as vicissitudes que enfrentei, considero gratificante o resultado.

O que é que a sua memória conserva do livro que marcou a sua estreia, em 1977, "Do fogo e da água"?

Os mesmos sonhos! O primeiro livro de um autor carrega, quase sempre, muita ingenuidade, muita inocência, muita boa-fé, muita crença. A vida rouba-nos quase tudo isso. Felizmente, não me roubou a capacidade de sonhar!

Há 45 anos, o país tinha saído há pouco do período revolucionário e muitos dos sonhos começavam a esboroar-se. Confrontando esse período com o atual, a que conclusões chega?

Com o país saído do longo período de obscuridade, o povo almejava uma vida nova. Os sonhos enchiam as ruas, circulavam de mão em mão. E os risos. E os abraços. Um mundo novo, mais justo e mais igual, parecia possível! Os sonhos tinham um caráter coletivo! Naquele tempo, todos, mais ou menos ativamente, nos sentimos parte de um futuro que parecia estar ao alcance das nossas mãos. Mas naquele tempo, como agora, o sistema político tem formas hábeis e perversas de matar as nossas esperanças, de controlar as nossas mentes, de destruir os nossos sonhos.
Nos dias de hoje, os atuais acontecimentos mostram que a globalização tem pressa em estender os seus tentáculos pelo mundo fora. O seu triunfo representará, a médio prazo, a uniformização de um estilo de vida de solidão tecnológica, decadente, e o desaparecimento das culturas nacionais. Hoje em dia, o controlo da vida privada já é total. Pode dizer-se que a liberdade individual já é uma caricatura. O que a vida (não) será no futuro breve é quase inimaginável! Há muito que deixei de acreditar no sistema democrático, porque proporciona alternância entre partidos mas não permite uma mudança real de sistema político, e muito menos de confiar naqueles que teriam obrigação de zelar pelos interesses do seu povo e do seu país, porque consentem que Portugal seja arrastado para ações indignas no plano internacional e nos deixam levar para projetos de futuro discutíveis e perigosos. Estes foram, naquele tempo e neste tempo, os mais dolorosos ensinamentos que aprendi!

Ainda acredita no poder transformador da escrita, apesar de vivermos num país onde quase dois terços da população não lê sequer um livro por ano?

A escrita, pela sua clareza e imediatismo, tem de ter essa função! Apesar da situação de analfabetismo funcional que temos hoje em Portugal e o desinteresse que a juventude revela pela leitura, é importante saber que são os grupos minoritários conscientes e ativos que fazem avançar e mudar o mundo. E esses, por certo, são interessados e amigos da leitura! Daí a importância da cultura, da literatura especialmente.

Retomou os estudos aos 40 anos, formando-se em Psicologia. Esses conhecimentos teóricos tão específicos foram importantes também do ponto de vista literário, refletindo-se na sua escrita?

Sem dúvida! A Psicologia, enquanto ciência que estuda o comportamento humano, ajudou-me a desenhar o perfil de personagens nas minhas histórias mas, essencialmente, foi importante para a minha compreensão dos mecanismos usados pelo poder no sentido da formatação mental dos cidadãos, do controlo das massas e, também, para um melhor entendimento dos elos que nos atam à servidão.

Como procura manter a esperança um escritor tão fortemente realista como é o seu caso, recusando um olhar "contemplativo, lamentoso e passadista"?

Acredito na humanidade, na sua força, na sua clarividência! A História humana revela-nos períodos brilhantes mas também períodos obscuros. A escuridão da Idade Média e a barbárie da Inquisição duraram tempo de mais. Mas não pararam a marcha. Apesar dos passos à retaguarda que estamos a dar hoje em dia, a Humanidade saberá arrepiar caminho e prosseguir a sua caminhada rumo a uma sociedade sem peias de qualquer espécie. Infelizmente, o processo social é demasiado lento relativamente às nossas expectativas, porque a nossa vida é curta, mas é absolutamente certo. Por isso, apesar de ter consciência de que nunca viverei no mundo a que aspiro, é por ele que vivo, é por ele que escrevo, e por ele mantenho a minha esperança. Esta esperança é o meu legado aos vindouros, com fé de que alguém me prossiga.

O que pode um poema contra a violência do Mundo?

Um poema pode tudo o que se quiser fazer com ele, seja hino à liberdade, grito, apelo, pedra de arremesso ou arma de agitação. Um poema pode unir, chamar à luta, aglutinar multidões!

Nesse período de tempo publicou poesia, mas também teatro e romance. O que cada um destes géneros traz de particular à sua voz literária, em seu entender?

À ficção, romance e contos, e ao teatro entrego as minhas convicções, os meus sonhos e toda a minha acutilância. Esses géneros literários carregam, no plano nacional, o caráter distintivo da minha obra. Na poesia, além dos meus ideais, revelo também o meu lirismo, a minha pele, as minhas fragilidades.

Há um livro novo seu quase a sair. O que poderemos encontrar nas suas páginas?

"O áspero tempo das marionetas", contendo a minha produção poética dos últimos dois anos, estará, com lançamento no próximo dia 2 de julho, pelas 16h00, na Biblioteca Municipal Rocha Peixoto, na Póvoa de Varzim. Nele, os leitores encontrarão a mesma vontade de despertar consciências, de sacudir as mentes entorpecidas... A mesma insubmissão. Seguramente, os mesmos sonhos!

Há alguns anos, por ocasião das quatro décadas de atividade literária, deixou a ideia de que já teria escrito o essencial do que queria. Apesar disso, tem continuado a publicar. A inspiração continua sem pedir licença para entrar?

Não sou escritor de histórias com final feliz. E sinceramente havia considerado que o essencial da minha obra estava escrito. Mas aprendi que, no campo da criatividade, não existem decisões definitivas. A criação das minhas histórias é um processo doloroso, que faz da minha escrita uma quase maldição. E a poesia continua a atormentar-me. Há imperativos da alma que nem nós próprios somos capazes de explicar!

É um dos muitos herdeiros da longa tradição realista da literatura portuguesa. Esse predicado continua bem vivo nas novas gerações?

Temo que possa perder-se! Vejo as novas gerações muito acomodadas quando o realismo implica denúncia, confronto e, consequentemente, sofrer na pele as consequências: a censura do silenciamento! Hoje busca-se fama e sucesso, que são legítimos, mas quase sempre inférteis. Um escritor realista nunca será "best-seller", por sublime que possa ser a sua escrita.

O que é que a passagem dos anos trouxe de diferente ao seu processo criativo?

Tal como a vida, que nos rouba inocência, saúde e forças e nos carrega com desenganos, a idade tem-me trazido menos imaginação, mais despojamento, mais acidez.

Entre António Rocha e o seu pseudónimo Joaquim Murale abundam mais as semelhanças ou diferenças?

Toda a minha vida procurei ser coerente, com todas as dificuldades que isso implica. Só a coerência nos dignifica! Inevitavelmente, paguei um preço elevado para que os dois vivam irmamente dentro de mim, apesar das diferenças que os distinguem. O António Rocha continua a ser a criança tímida, introvertida e acanhada tal como era na infância. O Joaquim Murale, pelo contrário, não tem medo das palavras e usa-as, sem reservas de qualquer espécie, buscando a mais certeira para cada circunstância ou personagem, consciente que, quando a palavra tem uma missão a cumprir, deve ser capaz de romper indiferenças.

Tal como assegurava o título de uma das suas obras mais recentes, concebe a literatura como "um manifesto contra a morte do futuro"?

Essencialmente, eu escrevo sobre o presente porque só agindo sobre o presente se pode mudar o futuro. O futuro que se antevê mostra-se num oceano de inseguranças, incertezas, inquietações. A própria sobrevivência da vida no planeta está em risco. As últimas décadas têm assistido à extinção de inúmeras espécies de animais. Outras estão seriamente ameaçadas. Cientificamente, não sabemos quanto tempo ainda nos resta. Mas todos deveremos estar conscientes de que, se nos mantivermos expectantes (confiando que os culpados hão de encontrar as soluções) e não agirmos com urgência, o fim será inevitável! A sociedade de consumo define como objetivo da vida a acumulação de bens. Somos compelidos a consumir como se os recursos do planeta fossem inesgotáveis e nós a última geração a viver nele! Estamos a esquecer-nos que outras gerações nos seguirão. Conscientemente, estamos a roubar-lhes o futuro! Ao fim e ao cabo, o objetivo maior da vida deveria ser bem mais simples: a busca da felicidade individual e coletiva! Nesta perigosa conjuntura, a literatura tem mesmo de ser esse manifesto em favor da vida humana e de todas as formas de vida natural que, connosco, partilham o planeta!

Quão próximo está ainda hoje das paisagens da sua infância?

Cheguei à idade em que a expectativa de porvir é frágil face ao passado que carrego. As planícies alentejanas salpicadas de papoilas, o calor de morrer, o céu cortado por pardais e pintassilgos, o vento no rosto, os aromas silvestres, as belas e frágeis flores da esteva serão sempre as minhas raízes! E serão sempre o meu mais seguro refúgio!

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