
Aurelino Costa estreou-se na publicação há 30 anos, com "Na raiz do tempo"
José Alberto Nogueira/Direitos reservados
Num registo tão explícito como o título deixa sugerir, Aurelino Costa regressa à publicação com "Amónio". Para o poeta, a cumprir 30 anos de atividade literária, a obra deve ser lida à luz da ausência de filtros: "Quando escrevo deixo sair tudo. Não uso coador"
Vozes em tropel, num coro desordenado, súplicas, imprecações ou meras digressões poéticas; nada parece ser alheio a "Amónio", novo livro de Aurelino Costa editado pela Húmus, que, sem ter pretensões de captar o nosso tempo, não se furta às evidências. "Sempre que o humano consome está a ser consumido", sentencia o autor.
Tal como o "Amónio", nas suas múltiplas variações, também a poesia pode ser destrutiva?
Viver é uma destruição monstruosa. Já há 100 anos, Magritte dizia que a vida era um escândalo. Viver dói. Viver mata. Não sei se ele conseguiria pintar um quadro da vida de modo a nele poder escrever : "ceci n"est pas la vie". O desejo anda pelas ruas da amargura. Como e porquê foram criadas maquinarias para o neutralizar ou mesmo erradicar? O desejo sofreu as contundências das várias indústrias, tornou-se um desejo processado, um enchido, um 'fast-desire'. Falo em desejo e não em líbido. E falo, recuperando Spinoza, da alegria que parece ter-se escondido das brutalidades que nos assolam. "Amónio" talvez evidencie que sempre que o humano consome está a ser consumido.
Há neste livro como que uma procura por uma qualquer espécie de impulso vital. A escrita destes poemas ajudou-o a acercar-se desses territórios?
Em circunstâncias não esclarecidas, o corpo fica totalizado por uma pulsão indivisível de Eros e Tanatos. O texto pode esclarecer esse signo existencial : Eros para a descolagem rumo à escrita com Tanatos a reificar a "obra evacuada". Em termos desta escrita, não se trata de uma procura, antes a expulsão de um evento biológico. Quando escrevo deixo sair tudo. Não uso coador. E só depois da aterragem, através de ferramentas de ménage e recomposição, abro a ostra do lixo vomitado, em demanda de uma pérola. Como trabalho improvável de arqueologia recente. Ou, como diz Agamben, tento compreender não as luzes, mas o escuro. Não usando o eco, não sendo ecográfico. Assim, em "Amónio", não foi a escrita que me aproximou dessa dimensão, foi essa dimensão que assomou na escrita. Se falássemos em inteligência artificial, diria que, na despossessão do evento, visto a bata para uso do bisturi na massa genética da escrita, para o aperfeiçoamento da expelição.
No presente livro aparenta afastar-se de algumas das características mais associadas à sua escrita, como a veia telúrica ou a depuração. Nesse sentido, é um livro de rutura?
Ninguém diz de um homem de 30 anos que entrou em rutura com os seus 20 anos ou mesmo com a sua adolescência. Notam-se as variações, a metamorfose. Falaremos de uma rutura antropomórfica? No caso da escrita, de uma rutura antropográfica? Tal como os corpos, e até por causa deles, os textos mudam de tempos e os tempos mudam de textos. O corpo é um colóquio de corpos. Quando não existe tal colóquio - até por fatores como a ancestral e massiva aversão lusa à leitura, o destrato social ou a doença - o corpo, o texto, fica confinado, reduzido. Coletiva e individualmente estamos a viver tempos murchos e muito rígidos. A coisa telúrica foi há décadas substituída pela coisa planetária. O bucolismo do Bernardim já não tem um referente. A dicotomia campo/cidade tornou-se arcaica. As aldeias estão desertas. E a expressão do suburbano, excetuando algum hip hop e algum rap, não conheceu por aqui grandes esplendores. As cidades, sejam ou não arquitetonicamente verticais, estão igualmente contaminadas pelas bolsas, poucos abrigos de liberdade aí se encontram. Quanto à depuração: parece-me algo envolto em fumos de natureza mística, e eu não beneficio do conhecimento de corpos ou textos puros. Nesse sentido prefiro o campo semântico do húmus.
É evidente a tentativa de convocar o caos do mundo para as páginas do livro. Sugere uma leitura também ela desordenada para acompanhar o espírito do livro?
Não seria possível convocar o caos do mundo, porque "Amónio" é um livro muito pequeno, e o caos humano não caberia em tal diminuto. É possível que qualquer humano seja um caos, um sedentário caos domesticado, uma bolha convenientemente pairante, de células formatadas que não possuem o botão Reboot. Num tempo/espaço ordenados pelo estilhaçamento do humano através de monolitos egocêntricos, o caos ou o apocalipse é exatamente o que resulta do étimo da palavra apocalipse: tirar o véu, desvendar. Ou seja: rebentar a bolha. Sugerir seja o que for para a leitura dos meus textos seria redundante. Já os escrevi, eles mesmos são sugestão. Montaigne, falando sobre a palavra, dizia que metade pertencia a quem a dizia e a outra metade a quem a ouvia. Isso mesmo se pode verificar sobre a escrita e a leitura. Talvez as percentagens (as metades) não sejam exatas. Se um texto não é jornalístico, se não é estacionável em mono-culturas e propicia o aberto por via de uma polissemia endógena, os arados utilizados pelos seus leitores tanto podem gerar conflitos de identificação como de apropriação, como podem até ser conduzidos ao patamar da execração. Não ignoro as questões comerciais e as expectativas dos leitores reduzidos a utentes. Os ditos utentes, em conluio com as direções editoriais exigem o vício, a continuidade, a permanência do estilo. O estilo é uma ditadura.
Embora o livro assente na partilha de um universo muito pessoal, haverá por certo autores a quem ele é credor ou, pelo menos, pretende prestar tributo. Quais destacaria?
Em vez de credor, palavra que me leva diretamente ao banco, prefiro a palavra resultado. Resultado de todas as vozes que ouvi desde a placenta e que o cérebro encofrou no córtex ou na amígdala sem deixar que eu as saiba diretamente e que aparecem como borbulhas no caldo escaldante da escrita. Também as vozes lidas, as vozes bailantes, as vozes pictóricas, as vozes gestuais, todas, do contratenor ao barítono, do soprano à cana rachada, dos castrati aos podcasts. Todas as palavras que vi, ouvi e li estão presentes no que escrevo, sem que consiga estabelecer qualquer bibliografia específica. Embora pudesse haver eficácia nesse processo bio-burocrático de recuperação das minhas vidas passadas durante a(s) minha(s) vida(s). Seria muito interessante que os livros tivessem sempre um "corpus bibliográfico" que pudesse servir de pasto para indagações literárias. Sou, como qualquer outra pessoa que escreva, um indivíduo muito influenciado. Houve alturas em que mimei Diógenes à procura de um homem não influenciado. Passaram décadas e nada. Se encontrado, tal homem não-influenciado seria um Autor. Espero, sem desespero, a sua chegada, envolto em mantras sebásticos.
Como salienta o Alexandre Teixeira Mendes (A.T.M.) no posfácio, o livro procura fazer a apologia do "aspeto delirante do humano", mas também "do grotesco, através de sucessivas descrições, onde a metáfora não se limita a estabelecer mas aponta para". As conquistas da civilização são mais ilusórias do que pensamos?
Amónio, creio, não faz a apologia do "aspeto delirante do humano", como diz certeiramente o Alexandre. Não faz, de resto, apologia de qualquer espécie. Talvez se possa dizer que os delírios podem ser, em "Amónio", percecionados como dança em pontas, mas em Amónio, o que existe é uma constatação e incorporação de tal "aspeto delirante do humano" que, de alguma forma, tenta elaborar a sua transcrição, tal como é possível considerar a arquitetura tailandesa como a transcrição de um sonho, como refere Lévi-Strauss. O mesmo se aplica ao "grotesco, através de sucessivas descrições, onde a metáfora não se limita a estabelecer uma analogia, mas aponta para sentidos ainda não expressos." - acrescento mais algumas palavras, em sublinhado, a este excerto que o Alexandre redigiu no posfácio, para uma melhor compreensão do seu diagnóstico. A questão das "conquistas da civilização" remete-me para aqueles manuais de escola primária que me impingiram, anteriores ao 25 de Abril. Serão as ditaduras (ou autocracias, como os atuais comunicadores mediáticos disseminam) uma "conquista da civilização", ou antes a "conquista dos desgraçados"? Assistimos permanentemente ao foguetório de celebração da sociedade do conhecimento. Tal sociedade não existe.
Devolvo-lhe algumas das questões colocadas por A.T.M. No seu texto: "A condição humana situa-se no mal, é o próprio mal? Mal radical, mal sem redenção, mal definitivo?"
O conceito binário (mal e bem) está há muito esboroado seja pela análise e diagnóstico seja pela experiência pessoal. No entanto, parafraseando Galileu, Bem e Mal existem. Veja-se a Maldade dos salários: como é possível sobreviver, em Portugal - e quem está a sobreviver não está a viver - com o salário mínimo que nem sequer é mínimo para as necessidades básicas? Beethoven, numa carta a Zelter, afirmava que a Bondade era a melhor característica de um humano. Lembramos bem a canção de Camões : "Os bons vi sempre passar / No Mundo graves tormentos / E pera mais me espantar / Os maus vi sempre nadar / Em mar de contentamentos". Mas apesar de vários contributos, do pensamento às neurociências, estamos ainda muito longe de poder elaborar uma espécie de "teoria do todo" no respeitante à tal "condição humana". Talvez pluralizá-la e falar em "condições humanas" permita uma abordagem mais pertinente. A palavra "condição" é muito refutável, muito 'à vol d'oiseau' tal como a palavra "natureza" ou a palavra "caráter", são termos que terão de ser confrontados com a palavra "circunstância" entendida de forma extensa, seja no biológico seja no cultural. De Sun Tsu a Hobbes, de Engels a Nietzsche, de Kafka a Hannah Arendt, entre milhares de outros. Nestas eras tecnológicas, seria interessante atualizar o conceito de "centauro ontológico" de que falava Ortega y Gasset.
Por falar em Mal, em que sentido a poesia o ajuda a libertar (ou a conter...) os eventuais demónios interiores?
Quando a escrita - entendida aqui como vivência, longe do ofício ou do funcionarismo - se apropria do corpo, a libertação, ou melhor: o desentupimento, acontece em off, em situação de ausência de controle. Desaparecem os diversos palcos que implicam papéis e funções, embora estejamos involuntariamente em estado de tragédia e em particular no seio do pathos. São episódios de desobstrução e o seu resultado, sendo expressão do visceral, transporta quer o entulho próprio quer o entulho adquirido, por isso se torna eufemístico chamar simpático a um dos sistemas nervosos. Ou parassimpático. Necessitaríamos de um sistema nervoso empático. Como mutação ou como recuperação. Nesses momentos, muito escassos, a mente, ou a formatação da mente, aquilo a que chamamos mentalidade, deixa de conseguir o dominío férreo do cérebro. E, sendo otimista, dá-se o eclipse do eu ou do ego. Nesse sentido, a escrita liberta, já que o ego é o grande opressor do corpo.
O livro é percorrido por uma corte ou galeria de personagens muito extensas. São arquétipos ou cada qual só se representa a si mesmo?
Podendo ser representação, nenhuma personagem se representa ou é representada. Se numa estação de metro, ou numa loja do cidadão, coincidimos com alguém, estamos com esse alguém ou com a sua representação? Talvez sejam corpos-pirilampos ou corpos-candeeiros que iluminam peremptoriamente os corredores de Creta. Sendo expostas, as personagens não estão porém em exposição, não são accionistas da Madame Tussauds. Embora qualquer texto possa empenhar-se em olaria feita com cera. E podem as personas sofrer de mal-estar arquetípico, continuado, episódico ou induzido. Ainda assim trata-se de leitura. Em cena, os leitores podem aprender que ao ler personagens estão a ler leitores.
Dadas as diferenças entre este livro e os seus mais recentes, é um firme crente das multiplicidades do eu?
O cérebro dispõe de tanta plasticidade que serão os múltiplos, e não os pseudónimos ou os fingimentos auto ou hetero-deliberados, a construirem o eu, essa entidade mítica e até situada no ordenamento divino através de Proteu. Às vezes organicamente inscritas no corpo, como no caso do filho de Tétis, o Briareu, possuidor de cem braços e cinquenta cabeças, como é referido por Homero. Por aí se vê quão pouca ficção têm as narrativas no plano do monstruário. Em vez de ficção científica ou antecipação científica, recepciono-as como regressão científica, ciente do erro de utilização do termo científico. Como sobreviver ao eu? É compreensível que o humano se revolte com a existência de outros dentro do seu próprio corpo, já que os múltiplos lhe retiram a cosmética líquida de Narciso. É compreensível que se indigne com a sua não-existência. Digo isto sem crenças. Embora tenha crenças. Quando à noite me deito acredito que acordarei depois do sono. Sem essa crença não seria capaz de adormecer.
No meio dessa inventariação de nomes avultam também figuras facilmente distinguíveis. Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência?
Verifica-se, de facto, uma co-incidência. São nomes com características humanas : olhos, ouvidos, boca, sensações, paixões, enfermidades e culturas. Continua a ressoar o prefácio da 2ª edição de "O Retrato de Dorian Gray" de Óscar Wilde, escrito pelo próprio Wilde, onde ele inverte o cânone e afirma que "a vida (a tal realidade) imita a arte muito mais do que a arte imita a vida". Tratar-se-á de uma mimesis reversa? Uma neo-alquimia do século 19? Uma reivindicação a cavalo do glutamato de potássio? Perspetivo tais paisagens como mistura inseparável, como os hemisférios cerebrais. Em tal caso, as escritas poderiam constituir o corpo caloso que os conecta. O imaginário foi capturado por start-ups ou tecno-plagiadores. Quem não consegue aceder ao seu próprio imaginário usa proprietariamente o imaginário alheio. O imaginário tornou-se uma app, uma aplicação. O roubo mais importante das últimas décadas. Se na raiz o negócio era a negação do ócio, vivemos o paradoxo do ócio como negócio. E ninguém ri, ninguém rizoma.
A escrita do livro parece ter brotado de um estado de agitação. Quais as circunstâncias que rodearam a escrita deste longo poema?
Em 2010, o"Inside Google Books" dava conta dos milhões de livros publicados, mais exatamente 129.864.880 livros, não incluindo as auto-edições ou livros sem distribuição comercial ou marca institucional, ou e-books, o que elevaria em muitos milhares de milhões o número apresentado. Houve, a partir do séc. 19, aquela matriz feita desígnio de "plantar uma árvore, fazer um filho, escrever um livro". Isso produziu um rebanho considerável em todas as paróquias. Mas era coisa curta, mesmo para a época, era um programa sem música, sem cinema, sem dança, sem pintura, um programa inscrito no complexo de eternidade, tentando boicotar o efémero, tendo-se tornado um club ou um casulo para quem escrevia, uma espécie de lema corporativo. Essa agitação não é a minha. Estou sempre a ser agitado por magmas metabólicos a que não consigo atribuir um nome único. Mesmo quem está refém de paralisias, está agitado. Viver comporta agitação mesmo que seja uma agitação circunspecta. Já referi os estados pelos quais o meu corpo passou durante o "processo" de escrita. Não escrevi um livro. Escrevi texto. O livro é um suporte, entre os muitos que existem, que tem a vantagem de não precisar de outra energia que não seja a do texto. A sua publicação será "para então dizer ao mundo/Ai Deus mo deu/Ai Deus mo levou", como escreve José Afonso.
Foi há 30 anos que começou a publicar. É aí que situa o nascimento do poeta?
O primeiro livro que publiquei foi há trinta anos. Mas comecei a publicar, ou melhor : comecei a ser publicado ainda em criança. Publicava o meu corpo quando saía de casa e ia conviver com vacas e as beijava na boca. Publicava-me ao ir para a escola. Até em casa tinha de me publicar. Hoje tudo é publicado e a esmagadora maioria das publicações, seja em que suporte for, são reveladoras de quistos entrópicos e de falta de lápis para o desenho de horizontes. Tais massivas publicações são uma borracha física e digital. Apagam, tentam apagar, a criação.
Tal como o título do seu primeiro livro indicava, ainda se vê como um poeta "na raiz do tempo"?
Nem na raiz nem na copa, está no álbum de família, ou melhor: no álbum dos parentes, sou parente desse mim que escreveu "na raiz do tempo". Esse mim não se deu por extinto e aparece-me algumas vezes no lombo como se fosse o ferrete que antigamente se usava para marcar o gado. Mas já não me queima.
As preocupações estéticas e literárias que o acompanhavam na altura mudaram de forma significativa?
Todo o mundo é composto de mudança, como diz Camões. Houve períodos intensos em que a estética foi, para mim, uma emoção que depois se fossilizava em sentimento. A estética de uma voz, a estética de certo corpo... Acontecia-me com força, fora da coisa literária. Os momentos de espera, as pré-ocupações, implicam um desgaste enorme. Muitas vezes não dispomos ou não existem os filtros que inibam a colonização do corpo pela ansiedade, coisa que nos entope. E talvez a escrita possa constituir um refrigério particular.
Além de poeta, é também declamador. Essa vertente performativa está também de algum modo presente no próprio ato da criação?
Já fui a umas consultas de clínica geral, com aparatos radiográficos e imagiológicos para indagar as possíveis fontes de ligação entre a oralidade e a grafia no meu corpo. Só me falaram do mecanismo de linguagem acrescido de atividades neuronais que não me saciaram enquanto diagnóstico. Tem havido vários rótulos atribuídos a essa atividade: recitador (assim se auto-definia o Mário Viegas), declamador (como o João Villaret), dizedor (como, entre outros, o Luis Miguel Cintra), ator de antigo teatro nacional (sem nomes ou cem nomes). Tratando-se de um acontecimento muito pessoal, ainda que trabalhado e até encenado, não beneficiou ainda de uma designação transversal, de trans-verso. Nesse sentido é como a depressão que já foi designada de doença do humor, melancolia, esgotamento, etc. No meu caso particular, vivo um interseccionismo, mas não consigo fazer a conta às percentagens do sonoro e do escrito. Às vezes acontece-me uma canção não pautável, outras vezes é uma canção de uma palavra só, parafraseando. Mais difícil é encontrar voz para os textos que, além de voz, têm música - ritmo, melodia, harmonia - como é o caso do singular Camilo Pessanha. Poderei alguma vez dizer/cantar o seu violoncelo? O choro das suas arcadas? A "spoken word" implica que os leitores não estejam imersos exclusivamente no texto e tenham de ler os diversos sons em presença, os vídeos, as instalações, a simbologia seja do texto seja de quem o diz, e atingir a luz ou lucidez de toda a envolvente onde a "cena sonora" é deflagrada.
A proximidade com o meio envolvente, sobretudo a natureza, é muito evidente no que escreve. Em que sentido a escrita acentua essa relação?
A folha em branco, material ou digital, não consegue refutar o palimpsesto. A evidência acumulada, em particular a descodificação do genoma humano, mostra que os corpos não são tábulas rasas à nascença, ao contrário do que foi estipulado durante séculos, de Aristóteles a Locke, passando por Rousseau. Isto não fazendo qualquer epitalâmio ao determinismo, apenas anotando verificações. Tais tábuas raspadas albergam um considerável stock celular e genético. Chegam já colonizados e outras colonizações irão sofrer. Talvez nos próximos anos se consiga um novo tipo de colonoscopia para identificar os pólipos não do cólon mas sim do colono. Esteja onde estiver estou sempre próximo das "naturezas" - o meu corpo é um viveiro de muitas delas - já que me imagino com muita frequência, dentro de uma cápsula espacial. Especulando, estando diante do espelho, estando diante dos semelhantes, torna-se evidente que também sou uma cápsula. Que tenta enganar a gravidade e faz da escrita a sua levitação.
