
"A escrita é uma forma de confronto. O escritor confronta-se com a natureza humana, a começar pela sua própria natureza"
Artur Machado/Global Imagens
Galardoado com o Prémio Literário João Gaspar Simões, "Madalena", o novo livro de Isabel Rio Novo, é uma reflexão ficcional sobre a doença, a família e a identidade que teve como um dos pontos de partida um cancro que a autora enfrentou há uma década.
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A partir do quotidiano de uma professora que enfrenta um tumor maligno e de uma remota parente cuja lenda controversa atravessou gerações, Isabel Rio Novo escreveu o seu romance "Madalena", galardoado com o Prémio João Gaspar Simões.
Por muito tentadora que seja uma leitura autobiográfica deste livro, gostava, enquanto autora, que se visse além disso?
Sim. Como tive cancro e nunca o escondi, é legítimo que os leitores pensem que o livro é autobiográfico, mas basta lerem a história até ao fim para não tirarmos essa conclusão. Não posso negar que a vivência do durante e pós doença foi das experiências mais marcantes da minha vida. Por isso, qualquer pessoa compreende que, enquanto escritora, faça dela matéria de escrita. Ao conter memórias das minhas próprias vivências, o livro absorve muitas histórias de cancro à minha volta, de familiares ou amigos, com as histórias mais diversas. A doença habilitou-me a compreender melhor certas dimensões do que significa passar por esta situação.
O que pesou mais a favor da decisão de escrever este livro: a doença por que passou ou as ligações familiares?
O processo de escrita em mim é moroso e acabo por escrever vários livros ao mesmo tempo. Este livro em particular foi muito moroso. A primeira versão estava pronta em 2013, já depois de ter passado pela doença e de durante os tratamentos ter contactado com uma personagem familiar que é muito ficcionada no romance.. Ao longo deste tempo, em que fui reescrevendo e reformulando o texto, o romance ganhou muitas outras dimensões. Se tivesse sido publicado quando foi escrito, seria um romance muito mais sobre doença e não abarcaria o que acabou por conter, como a identidade ou a família.
Diria que é o seu romance mais pessoal?
Pode parecer por causa do tema em si e de, pela primeira vez num romance, o narrador falar na primeira pessoa, mas os anteriores também têm uma parte muito forte de mim. Não é muito mais autobiográfico do que "Rua de Paris em dias de chuva" ou "Rio do esquecimento", por exemplo
Agrada-a enquanto autora transmitir a ilusão ao leitor de que está a aceder à sua esfera mais íntima?
O romance é ficção e uma forma de mentirmos, dizendo a verdade. Quando publicamos, o livro deixa de ser apenas nosso, pelo que não posso negar que os leitores possam ter as suas próprias interpretações. O que vou tentar fazer, nos contactos com os leitores, é chamar a atenção para as outras dimensões da história, que passam pelo mistério, ternura e até humor, ainda que um pouco ácido. Espero que os leitores se deixem emocionar e até perturbar. Espero que ninguém tenha medo disso. Quando uma leitura me incomoda, saio sempre melhor, não no sentido purificado, mas de alguém mais consciente e definido. Espero que o leitor se identifique com essa emoção.
O livro situa-se entre dois registos: um mais histórico e outro de natureza biográfica. Desse intercalar de registos, acha que resulta uma fusão entre ambos?
Vejo o romance como um género onde gosto cada vez mais de experimentar. Sem deixar de ser romance, pode ser muitas outras coisas. Acaba por ser assim um espaço de liberdade. Há dias, um leitor disse-me que leu o romance como um encontro. E acaba por ser, de facto, um encontro entre duas mulheres que não se cruzam no mesmo tempo e no mesmo espaço. É o que venho fazendo sobre as relações à distância, de pessoas que não coabitam mas que se descobrem uma à outra.
Dedica o livro a vários parentes, já falecidos ou não. Escrever a história dos nossos mortos é trazê-los para o presente?
Quem me dera. Acho que, antes de mais, significa escrever a nossa história ou pelo menos a ideia que nós fazemos da história dos nossos mortos. Isso é muito reconfortante para nós. A dedicatória aos nossos antepassados e descendentes faz parte da ilusão bonita de acreditarmos que há uma componente da existência que vai para além de nós.
As cartas que serviram de continuidade geracional foram perdendo expressão. De que forma isso coloca em risco a passagem de testemunho entre gerações?
Agora é tudo muito mais volátil. A narradora da história fala disso, dizendo que quando desaparecemos quase nada fica, tudo se desvanece. A comunicação é por correio eletrónico. As gerações anteriores deixaram-nos coisas, objetos. Um dos aspetos reais do livro é o armário que o bisavô deixou e foi passando de geração em geração até chegar ao presente. É um móvel robusto e lindíssimo que restaurámos e está na sala de jantar. O que vamos deixar aos nossos filhos? Móveis do IKEA feitos para não durarem e que são iguais aos de toda a gente? Hoje tudo parece muito mais provisório e volátil. Não é por ter o armário do meu bisavô que ele perdura - perdura a minha ideia dele -, mas as novas gerações vão ter muito menos objetos e registos com os quais podem construir uma ideia dos seus antepassados.
O livro evidencia a forma distinta como a sociedade de hoje lida com a morte. Como é que, em poucas gerações, ela passou de algo inevitável para uma realidade oculta?
Concordo em absoluto. Mesmo em relação ao cancro, ainda há muita gente que espera que dos testemunhos de quem passou pela doença resulte uma experiência da qual saem mais purificados ou iluminados, enfim, portadores de uma mensagem positiva.
Por vezes, até se acha que podemos atingir a sabedoria suprema depois de passarmos por um cancro.
Se não é a sabedoria ou a santidade, é, pelo menos, uma espécie de degrau em relação à humanidade comum. O que quis mostrar é que o cancro é uma doença comum e, segundo as estatísticas, infelizmente cada vez mais comum.
Uma em três pessoas, em média, irá passar por um cancro ao longo da vida, segundo vários estudos.
O que não é de espantar, visto que, felizmente, temos uma longevidade cada vez mais comum. É preciso, por isso, dessacralizar o tema e mostrar que é uma experiência no meio de outras experiências, das quais de pode fazer matéria escrita. O desafio passou por criar uma protagonista como uma jovem que lida com um cancro e, ao contrário do que se espera, não é doce. É alguém que não é naturalmente simpática, mas, ainda assim, cria empatia com o leitor.
"Se as pessoas soubessem que iriam morrer, não iriam suportar viver", como é dito a dada altura do livro?
Acho que é uma evidência. Tentamos evitar o assunto, utilizando vários eufemismos, mas o elefante está no meio da sala.
O acaso é também mencionado no livro. Acha que tem uma importância decisiva na nossa vida e determina o nosso destino?
Sim. Mesmo nas histórias da doença, a sorte e o azar têm uma componente importante.
Há um tom de acidez na protagonista que demonstra um desconforto pela proteção que a sociedade tenta ter face a quem passa por um cancro. A condescendência pode ferir tanto como a indiferença?
Como alguém que já passou pela doença e conviveu com muitos que também padeceram do mesmo, acho que cada pessoa lida à sua maneira e as pessoas são muitas diferentes. Não existe uma forma universal de reagir. Para quem está de fora, não é fácil como se há-de lidar. No caso da protagonista, a condescendência é, a seguir à doença, o pior que ela podia ter.
Há quase um século a separar as duas protagonistas, mas as ligações entre ambas são óbvias. Acredita numa linha temporal permanente e não na clássica divisão entre o passado, presente e futuro?
Tudo o que tenha que ver com o passado e com História sempre me apaixonou. Ao visitar determinados locais e ao ler determinados textos, tenho a sensação de viajar no tempo. É obviamente uma ilusão, pois trata-se de uma recriação da nossa mente em relação àquilo que achamos que pode ter existido. Para mim, não é nada estranho situar uma história no passado. Requer uma investigação para conhecer uma época que não é a minha, mas é algo que faço naturalmente.
Fora do âmbito literário, crê que não faz sentido essa divisão?
Como seres biológicos, o tempo está inscrito na nossa natureza. Temos coordenadas muito concretas desde o nascimento. Pessoalmente, acontece-me ter episódios do passado absolutamente inscritos na minha memória e uma relação mais distanciada com acontecimentos próximos. Somos seres feitos de muitas camadas e, como tal, por vezes acontecem associações de ideias muito misteriosas.
As duas figuras centrais do romance representam, cada qual, linhagens literárias femininas muito marcadas. Apesar dessas diferenças, acredita que são complementares?
Não são completamente diferentes. Não vejo a narradora como 100% sofredora e passiva, enquanto Madalena é a mulher sedutora e enigmática, com uma crueldade que poderá ser matizada à medida que vai descobrindo a sua verdadeira história. À sua maneira - sendo uma mais fogosa e outra mais fria -, são ambas personagens femininas fortes.
A dada altura, fala na "massa terrível e fascinante de que se fazem as histórias". Crê que o sofrimento e o prazer caminham lado a lado na construção de um romance?
Não acredito na ideia do escritora atormentado. A escrita é uma forma de confronto. O escritor confronta-se com a natureza humana, a começar pela sua própria natureza. É uma tentativa de descodificar as suas próprias emoções através do confronto. Nesse sentido, existe um certo incómodo, que acaba por ser revelador. Não serve para a cura, mas é algo que, ao permitir o confronto consigo próprio, traz resultados positivos. Escrever é um prazer, porque é a forma que tenho de comunicar, de chegar ao outro e de comunicar comigo, permitindo-me expressar esteticamente.
Nove anos depois de ter terminado a primeira versão, e com vários outros projetos de permeio, "Madalena" continua muito presente em si?
Tal como os filhos deixam de ser só nossos quando saem de casa, os livros, assim que são publicados, passam a pertencer também aos leitores. É natural que, após a conclusão, acabe por haver um distanciamento natural em relação à narrativa. Ando sempre com dois três livros na minha cabeça e convivo bem com isso. De cada vez que me chamam para um clube de leitura ou uma sessão com leitores, acabamos por reconhecer as personagens e aproximarmo-nos novamente delas.
Sempre teve certezas quanto à escrita, mas só mais recentemente os seus livros passaram a chegar a mais pessoas. No ato solitário da escrita, nada mudou?
Não mudou. Continuaria a escrever, mesmo que fosse só para mim, como fiz durante algum tempo. O que mudou foram as circunstâncias à volta. Não só em termos de publicação e de receção, mas também pelo facto de viver com alguém que também escreve e tem um papel muito importante em todo o processo.
Qual o papel reservado aos ficcionistas quando o mundo parece ter os contornos de uma obra de ficção?
Há dias em que me apetece perguntar, parafraseando a biografia do Manuel António Pina, "para quê tudo isto?". Não faríamos todos melhor em estarmos a tentar descobrir a vacina contra o cancro ou algo do género? No entanto, também há dias em que acho o contrário, ou seja, a arte é necessária. Tal como a aprendizagem da beleza e da aceitação das nossas emoções. Sem que tenha da arte uma visão social no sentido literal do termo, creio de tudo isto só pode resultar uma melhoria do ser humano, na perspetiva do confronto com a nossa natureza e a dos que nos rodeiam, tornando-nos mais aptos a lidar connosco e com os outros.
Está a escrever uma biografia de Luís de Camões. Como está a ser a aproximação a uma figura tão rica, do ponto de vista literário, mas também humano?
Apesar de ter este projeto em mãos há um ano e meio, estou ainda longe de estar a escrever a biografia propriamente dita. É uma aventura fascinante conhecer melhor a vida de alguém que, há cinco séculos, esteve no outro lado do mundo, a bordo de uma nau, sujeitando-se a mil e um perigos que nem sequer conseguimos abarcar. Além disso, assumiu posições sobre um conjunto de temas que ainda hoje têm contornos modernos. Sobre o estudo da obra de Camões, houve avanços consideráveis nos últimos anos, mas, quanto à sua vida, foi o contrário. Por isso, o desafio é o de tentar reconstituir uma vida humana, sabendo que os materiais e os registos de que posso dispor são muito menos do que aqueles que gostaria que existissem.
Impôs algum prazo para terminar a biografia?
Seria impossível. Ainda assim, seria interessante que a biografia se pudesse associar aos 500 anos do nascimento do poeta, em 2025. Nem o editor nem o autor, ou sequer o biografado, se tivesse voto na matéria, estariam dispostos a sacrificar a qualidade pelo cumprimento de prazos. O que quero é que seja a melhor biografia possível do maior autor de língua portuguesa.
Todas as vidas são biografáveis, seja a de um grande poeta épico ou de um remoto antepassado familiar?
Sem dúvida. Todos os seres humanos são protagonistas da sua própria existência. Uma vez, um aluno meu de uma aula de escrita criativa sugeriu a ideia de pegar em personagens secundaríssimas de grandes obras da literatura. Como o empregado do hotel que vai abrir a portinhola da carruagem de onde Maria Eduarda sai no instante em que Carlos Eduardo a vê no romance '"Os Maias". Como seria o romance se o protagonista fosse ele? O desafio de um romance ou de uma biografia é tentar registar uma existência humana com o maior grau possível de rigor e verdade. E disso qualquer indivíduo é digno.
