O dia 20 de janeiro deixou mais vulnerável o movimento que vê em Donald Trump o salvador de um mundo conspurcado. Mas dissipá-lo não será fácil.
A tomada de posse de Joe Biden deixou desnorteados os seguidores da infundada teoria da conspiração QAnon, classificada pelo FBI como uma "potencial ameaça de terrorismo doméstico". Isto porque o triunfo do novo presidente norte-americano colidiu de frente com as previsões do movimento de que Donald Trump permaneceria no cargo para continuar a lutar contra os inimigos da chamada "máquina estatal". Na génese deste coletivo, que foi ganhando terreno fértil na Internet e nas ruas durante a pandemia, está a crença de que o agora ex-presidente luta para destruir uma "cabala global" encabeçada por pedófilos admiradores de Satanás que pertencem ao governo, às empresas e à comunicação social.
Foi com choque e desespero que o movimento reagiu ao empossamento de Biden como 46º presidente dos Estados Unidos, inundando plataformas online associadas a movimentos de extrema-direita de lamentos, incredulidade e novas teorias.
Durante semanas, os seguidores do QAnon promoveram o 20 de janeiro - data da tomada de posse de Biden - como um dia de ajuste de contas, em que democratas proeminentes e outros "pedófilos satânicos" da elite seriam presos e executados por ordem do presidente Trump, antes de Biden subir ao palco. Mas a profecia não passou mesmo disso: o juramento do democrata decorreu com normalidade, nenhuma detenção reclamada foi feita, e a comunidade teve um difícil encontro com a vida real.
"Só quero vomitar. Estou tão farto de toda a desinformação e de falsas esperanças"; "Está feito e fomos enganados"; "Este é um dia muito difícil para todos nós"; "O dia mais dececionante"; "A cerimónia de hoje não faz sentido para os patriotas cristãos"; "Acabou". Milhares de comentários deste género começaram a circular nos fóruns online para onde estas pessoas migraram, depois de expulsas das tradicionais redes sociais, no rescaldo do ataque ao Capitólio, em que participaram vários seguidores do QAnon. E ganharam força as desconfianças e dúvidas em torno da frase "Confie no plano", um dos principais slogans do movimento de extrema-direita.
Ainda assim, perfis influentes recusaram-se a deitar a toalha ao chão e instaram a comunidade a manter-se firme. E enquanto alguns reafirmaram as crenças, outros reformularam-nas. Um canal popular do Telegram - conhecido por priorizar acima de tudo a privacidade dos utilizadores - assegurou aos seus 130 mil assinantes que Trump continuava no controlo dos bastidores e que as "más ações" da máquina estatal seriam expostas "nos próximos quatro anos". Emergiu também a infundada tese de que Biden iria dirigir a sua administração como prisioneiro dentro de um complexo militar. E no final do dia, Ron Watkins, uma das figuras mais influentes da comunidade QAnon e um dos principais conspiracionistas da corrida à Casa Branca, convocou os seguidores a seguirem em frente.
Em frente, diz quem estuda, por uma causa e por um fim que não existem. Para especialistas e investigadores, o QAnon, que juntou centenas de milhares de indivíduos na crença de que poderiam impedir uma cabala global de criminosos que governam o mundo, não vai simplesmente desaparecer.
"Mesmo sem QAnon, sem 'Q', sem Trump, os elementos centrais que levam esses indivíduos a acreditar no QAnon ainda permanecerão e precisarão de encontrar saídas para as suas mentalidades conspiratórias e seus ideais antidemocráticos", considerou, à BBC, Marc-Andre Argentino, que investiga sobre comportamentos extremistas.
Ao JN, vários especialistas em desinformação e comunicação explicaram por que razão estas teorias reúnem tantos adeptos. Para ler aqui.