Síria

Jovem relata o inferno em Ghouta: "O interesse do estrangeiro não fez parar as bombas"

Jovem relata o inferno em Ghouta: "O interesse do estrangeiro não fez parar as bombas"

A história de Muhammad Najem, o miúdo de Ghouta Oriental que nos mostra como é viver no inferno da Síria e que já deixou de acreditar na paz.

Tem 15 anos e quase 27 mil seguidores no Twitter. Poderia ser apenas mais um YouTuber famoso. Mas não. Muhammad Najem vive numa das zonas mais perigosas do Mundo: Ghouta Oriental, pedaço amaldiçoado da Síria, onde morreram quase 700 pessoas na sequência de ataques aéreos, só nos últimos 13 dias de fevereiro. Em vez de vídeos sobre trivialidades, Najem dá a conhecer o horror diário daquele subúrbio de Damasco, disputado pelos rebeldes e pelo exército do presidente Bashar al-Assad desde 2013. Não se lembra do que é viver em paz. Os risos e as brincadeiras há muito que foram substituídos pelo estrépito das bombas. Mas tem a esperança de um dia voltar a ser um adolescente normal. O JN falou com o jovem "jornalista", em direto do inferno de Ghouta.

Quando é que começaste a tuitar sobre a guerra?

PUB

Há um ano comecei a publicar vídeos nas redes sociais. Queria mostrar a verdade que o regime sírio tem escondido. Gostava que todo o mundo visse o sofrimento de Ghouta Oriental depois do massacre dos últimos anos.

Nunca tiveste medo?

As bombas lançadas pelos soldados de Assad já nos assustaram milhares de vezes. Tudo o que tem acontecido deixou-nos paralisados. Mas quero continuar a tuitar.

Tens recebido muita atenção internacional. Isso é bom para ti?

Não estou muito satisfeito, porque o interesse que os jornalistas estrangeiros têm naquilo que eu faço não ajudou a fazer parar as bombas.

Achas que alguma vez a paz vai regressar à Síria?

Não.

Consegues ir à escola?

Não. Foi tudo destruído pela violência do regime de Assad e pelo exército russo.

E como falas tão bem inglês?

A minha irmã, Hiba, é que me ensinou a falar e a escrever em inglês. Mas é muito difícil, porque nunca mais tive aulas desde que a guerra ficou mais violenta.

Ela trabalha?

Agora não. A guerra destruiu tudo. Tem 24 anos, trabalhava num hospital, aqui em Ghouta. É formada em análises laboratoriais, na Universidade de Damasco. Mas, tal como a maioria das pessoas, ficou sem trabalho.

Quem vive contigo?

A minha mãe e a minha irmã. O meu pai morreu num bombardeamento, há dois anos. Estava numa mesquita a rezar com outras pessoas quando foram atacados. Ele era carpinteiro e tinha uma oficina. Sinto falta de o ouvir. Lembro-me muitas vezes de quando ele reclamava comigo para não ir para muito longe quando ia jogar futebol. Ficava sempre zangado quando eu fugia de casa para comprar bananas. Ele também tinha um papagaio que todos os dias levava para a oficina e era muito engraçado quando o pássaro começava a imitar as pessoas e os carros.

Sem ir à escola, tens amigos? O que fazes durante o dia?

Não há muitas crianças com quem brincar. De duas em duas semanas consigo estar com os meus primos. Mas na maioria dos dias fico em casa. A minha mãe tem medo e não me deixa sair. Só saio daqui para ir comprar comida.

Como era a Síria antes da guerra?

Eu era muito pequeno. Tinha oito anos quando tudo começou. Não me lembro de muita coisa. Mas tenho saudades de jogar futebol com os meus amigos todas as sextas-feiras, junto à oficina do meu pai. Uma vez parti uma perna, mas marquei um golo. Fiquei todo contente.

Mudou muita coisa entretanto...

Há memórias que nunca vou esquecer. Já passei um mês inteiro sem ver o sol, escondido numa cave. Os homens saíam de madrugada para ir buscar comida e roupa. Também me lembro de um bombardeamento muito forte. Estava numa cave com a minha irmã. Não sabia onde estava a minha mãe. Depois contaram-me que ela estava num local que tinha sido atingido pelas bombas. Só parei de chorar quando voltei a estar com ela. Salvou-se graças ao meu tio. Mas ele foi atingido e morreu. Nem o conseguimos levar para o hospital por causa dos bombardeamentos.

O que queres fazer no futuro?

Gostava de ir para outro país, onde houvesse escolas, para continuar a estudar. Viver com outras crianças, como qualquer menino. Queria muito ser jornalista para reportar o sofrimento das pessoas oprimidas.

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG