"Já não há Douro e já não há Gaia. Há o DOC Douro e o vinho do Porto"

04 junho, 2023 às 07:59
Artur Machado/Global Imagens

João Nicolau de Almeida preside à comissão organizadora do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas.

Enólogo e profundo conhecedor da região do Douro, João Nicolau de Almeida foi escolhido por Marcelo Rebelo de Sousa para presidir à comissão organizadora das celebrações do 10 de Junho que, este ano, estão centradas na África do Sul e no Peso da Régua, promotora da região Capital Europeia do Vinho em 2023. Credor de um legado de várias gerações ligadas ao vinho e ao Douro, defende que é imperioso acabar com as guerras do passado entre produtores e exportadores e olhar para um futuro que passe por produção biológica, em menor escala, e com o dedo da ciência.

Como soube que ia presidir à Comissão das Comemorações do Dia de Portugal, Camões e das Comunidades?

Foi um espanto. Estava num supermercado e, de repente, toca o telefone e ouço: "Aqui fala o presidente, Marcelo Rebelo de Sousa". E eu pensei cá para mim: "Estão a brincar comigo?". Mas depois reconheci-lhe a voz. E disse: "Sr. presidente, fala João Nicolau de Almeida, estou aqui disponível". O presidente disse que queria convidar-me para fazer um discurso no dia 10 de junho. E eu fiquei paralisado, sem saber o que fazer. Como tinha as duas mãos com pesos, estava em alta voz. Olhei à volta e as pessoas da fila estavam todas a assistir. Foi um convite especial, mas claro que aceitei logo, porque, sendo eu uma pessoa que sempre viveu do Douro, e agora os meus filhos também, recusar uma coisa dessas era impensável. Agora, fazer é muito mais difícil...

CitaçãocitacaoÉ preciso turismo, mas turismo de qualidade. Grupos pequenos que provem os vinhos [...] e paguem o preço justoesquerda

Imagino que na altura tenha sentido um orgulho imenso.

Não tive tempo de ter orgulho, só tive tempo de ficar atrapalhado. Mas claro que cada vez tenho mais orgulho e mais responsabilidade, porque estou a falar para o país. Nos vinhos, fazemos muitos discursos, até porque o vinho facilita o discurso. Mas um discurso para a nação é coisa que nunca pensei.

Considera que este 10 de Junho vai projetar a região do Douro?

Espero que sim. Primeiro, vamos à África do Sul e gostaria de contar aos nossos compatriotas o que é que se passa aqui, porque muitos já não vêm cá há uns tempos e pensam que Portugal está no século passado. E, portanto, a minha grande ideia é tentar passar a mensagem da modernidade, sobretudo da região do Douro e do vinho do Douro. Não só o vinho do Porto, que é conhecido mundialmente - suponho que, em Portugal, não há uma marca que seja tão conhecida como o vinho do Porto -, mas também os chamados vinhos DOC Douro, os vinhos de mesa que se desenvolveram nesses últimos anos, de uma maneira fantástica. E tudo isto foi muito rápido, foi uma explosão que eu tive a sorte de acompanhar. Trata-se de uma região muito antiga, do tempo da formação de Portugal, que se desenvolveu com a vinda dos monges de Cister, grandes especialistas na agricultura e na vinha.

O Douro é a Capital Europeia do Vinho em 2023, fruto da iniciativa conjunta de 19 presidentes de Câmara. Há unidade entre os autarcas da região?

Eu cheguei de França em 1976 e comecei a trabalhar. E havia uma grande separação entre os chamados exportadores, que estavam em Gaia, e os chamados produtores, que estavam no Douro. E ninguém se entendia. No Douro, como são muitos municípios, era muito difícil haver uma ideia conjunta. Até que aconteceu uma coisa que, para mim, foi fantástica: a declaração de património mundial da região do Douro. Isso veio unir os municípios do Douro. E agora, com a CIM [Comunidade Intermunicipal] do Douro, ainda mais. Em Gaia, era a mesma coisa. Um exportador puxava para um lado, outro puxava para outro, e todo este mundo do vinho do Porto, na altura era só o vinho do Porto, era de muita guerra verbal, de muito pouca unidade. Os de Gaia sabiam de vinho, os do Douro sabiam de vinha. Até à geração dos meus pais, a coisa passou-se assim. Lembro-me de ir, desde pequenino, para as vindimas com o meu pai e o meu irmão gémeo, e era uma epopeia. Íamos até Quinta do Vale Meão, em Foz Côa, que tinha um monte à frente, e, para nós, para lá daquele monte, era o fim do mundo. Acabava ali.

Voltando ao 10 de Junho no Peso da Régua, pensa que vai ter uma importância meramente simbólica ou que terá impacto real nas pessoas e no desenvolvimentos da região?

Espero que tenha. O Douro está a transformar-se, mas vive num impasse. As tais guerras institucionais, quem manda aqui, quem manda ali - isso já é passado. Para a nova geração, a geração dos meus filhos, isso já não conta.

O Douro tem a importância que deveria ter, em termos de projeção política e desenvolvimento regional?

Acho que sim, mas é preciso uma mudança radical: meter a ciência no trabalho e nas instituições.

Num setor como o vinho, como é que se casa a inovação com a tradição?

Isso é um ótimo casamento. A tradição é muito valiosa, é um acumular de conhecimento ao longo de muitos anos. Mas não podemos continuar só com a tradição. Tem de ser a ciência a pegar na tradição e adaptar à situação atual.

Quer dar exemplos de como a inovação, a inteligência artificial e projetos de cariz tecnológico estão a marcar a produção de vinho no Douro?

É evidente que a parte tecnológica, as máquinas, os drones e todas essas invenções novas são muito importantes. E cada vez mais, porque há muita falta de mão de obra. Mas o mais importante de tudo é perceber o que é a vinha. Isto não é uma fábrica, pegar em máquinas e pô-las a funcionar. Nós estamos a trabalhar com seres vivos. Os pés de vinha são vivos, são naturais.

Têm desenvolvido trabalho com as universidades?

Temos. Na Quinta do Monte Xisto, por exemplo, temos um programa com o Instituto Politécnico de Bragança, em que estamos a estudar, em conjunto com outras casas, a influência da flor de castanheiro na conservação do vinho. Devido à vinda dos meus filhos, que já trabalham de forma diferente, a quinta nunca levou pesticida nem herbicida, nem nada dessas coisas químicas que se começaram a usar na industrialização. A nossa quinta nunca viu disso. E então o que é que estudamos? Pegamos nas plantas da quinta, mandamos para a universidade e perguntamos como nos podem ajudar a pulverizar os vinhos, se serve para míldio, para o oídio, para isto ou para aquilo. A geração dos meus filhos, que foram para a mesma escola do que eu, em Bordéus, faz as coisas de maneira diferente e eu rendi-me. É um mundo completamente diferente, mais natural, muito mais interessante e que nos leva à alta qualidade.

Como será o vinho do futuro?

Se não seguir este caminho, do biológico, não tem hipótese. Ainda mais com as alterações climáticas que há agora.

Já se sentem alterações climáticas no Douro?

Imenso. Na poda, por exemplo. No meu tempo, da industrialização, fazíamos a poda de maneira a que as máquinas passassem à vontade. Agora, temos de fazê-la de maneira a que as uvas estejam defendidas dos excessos climáticos. Por exemplo, do que nós chamamos escaldão. Quando vêm os dias de calor brutal, se as uvas não estão tapadas com a folhagem, escaldam, ficam queimadas. Portanto, já não dá para fazer o mesmo tipo de poda de condução da vinha, em que as folhas vão para cima e os bagos de uva ficam em baixo, a balançar, a apanhar sol. Ora, se vêm dois ou três dias de calor, elas vão ao ar. Com um outro sistema de poda, que nós chamamos de gobelet, que é baixinha, o pé da videira não vai tão alto e as folhas ficam a cobrir as uvas.

Quando vêm aquelas granizadas muito fortes também pode queimar, não é?

As granizadas são um caso um bocado mais complicado, porque não se pode travar uma granizada. Um calhau de granizo rasga completamente uma folha e as uvas. Há regiões que até põem redes por causa disso. Felizmente, o granizo é localizado, não é na região toda. Mas há muitas coisas que se podem estudar, por exemplo, a escolha das variedades de uvas para determinados sítios mais quentes ou mais frescos. Isso os antigos faziam tradicionalmente. Só que mudamos e, agora, vamos voltar atrás, mas com a ajuda da ciência.

CitaçãocitacaoO mais importante de tudo é perceber o que é a vinha. Isto não é uma fábrica. [...] Os pés de vinha são vivos, são naturaisesquerda

Quando os agricultores e os produtores de vinho têm prejuízos, são apoiados?

Uma vinha que levou o granizo com certeza que vai ser apoiada. Nós estamos a trabalhar numa região do Interior que está a ficar desertificada. Porquê? Porque não há gente para trabalhar, porque não há condições para pagar às pessoas. É complicado arranjar pessoas que queiram trabalhar.

E tem havido medidas do Governo para apoiar o Interior?

O Governo tem umas linhas para ajudar a viticultura, mas são tão complicadas, tão burocráticas, que só as casas que têm um escritório, um staff que possa trabalhar durante dois ou três dias nesse processo, é que têm hipótese de ir buscar algum.

Os pequenos produtores estão abandonados?

Só de olharem para os papéis, deitam a mão à cabeça e não perdem tempo com aquelas papeladas todas. É preciso arranjar forma de considerar os diferentes tipos de pessoas a quem se vai emprestar o dinheiro. E é muito importante que sejam os pequenos viticultores a receber, porque são eles que estão o dia inteiro ao pé da vinha. E isso puxa muito pela qualidade. Nós vemos na Borgonha, e mesmo em Bordéus, vinhas de três, quatro ou cinco mil pés ou até de um hectare que fazem vinhos fabulosos, que são vendidos a três mil euros a garrafa. Esse é o caminho.

O baixo preço dos vinhos portugueses é um problema?

Bom, felizmente, a coisa está a mudar um bocado. Mas ainda é um problema muito grande, porque ainda estamos naquela primeira fase, a da industrialização, que produz muita uva, muito fruto, etc., e depois tem de vender. E como é muito, tem que se baixar o preço, se não, não vende. Quem fizer pouco e bom tem um mercado mais seguro.

Ou seja, é mais fácil escoar, até para o estrangeiro, um vinho mais caro?

Cada vez mais. Isso é uma coisa recente também. Só há uns três ou quatro anos é que se começou a ver vinhos à venda a 60, 70, 80 euros a garrafa. Porque até aí era quatro euros, dez euros no máximo, e isso não pagava a produção. As pessoas faziam o vinho e vendiam abaixo do custo, só para fazerem um "pocket money". Toda esta estrutura de funcionamento da vinha, quer na parte comercial, quer na parte agrícola, tem que mudar, porque senão vamos ao ar.

O Governo tem de fazer uma intervenção mais musculada?

Sem dúvida, mas com sapiência. Com a ajuda da universidade, baseada em dados concretos e científicos. Como se faz em França, que eu conheço muito bem, porque estudei lá, ou nos EUA, onde também estudei. E vejo como as coisas são feitas, não é porque um presidente da Câmara disse que é assim, ou A, B ou C disse que era assado. Não pode ser assim. Tem de ser tudo bem estudado, e não só para sacar algum do subsídio.

O setor do vinho sentiu o peso da inflação?

Não me parece. Não tenho dados para dar, mas, como houve um aumento anterior do valor do vinho, e era coisa a que nós não estávamos habituados, porque era tudo mal pago, e começou um pouco antes, há uns dois anos, acho que a inflação não estragou o negócio.

O Douro está na moda. Não tem receio que se torne um belo postal turístico para quem nos vem visitar e não tenha as condições adequadas de vida para quem lá vive todo ano?

Tenho, tenho. O facto de ser património mundial veio travar muito esse desenvolvimento selvagem, mas o turismo é muito forte. Tenho medo que se rasguem estradas para camionetas grandes. O Douro é feito de microclimas, de microquintas, não pode ser um turismo de massas. Fazer um hotel de 200 quartos ou qualquer coisa assim é uma loucura. É preciso turismo, mas turismo de qualidade. Grupos pequenos que vão, que provem os vinhos, que tenham consciência do valor que está ali e que paguem o que é justo. O turismo já subiu até à Régua, até ao Pinhão, a Foz Côa não chegou muito. Mas eu prefiro que vá devagar. Por exemplo, da quinta, virada para o Douro, quando a noite cai e o sol desaparece, vê-se a lua. A lua, no verão, parece uma bola de fogo, atrás dos montes, a refletir no rio. Fica tudo embasbacado a olhar para aquilo. Mas, depois, o que é que aparece? Uma luz acende aqui, outra apaga ali. Puseram sinalização para os barcos passearem à noite e aquilo parece um aeroporto. Em vez do turista absorver aquele ambiente natural, de sossego e de beleza, parece um aeroporto. Há muita coisa que tem que ser cuidada.

Pensou naquilo que vai dizer no 10 de Junho?

Pensei, claro que pensei. E não foi fácil. Eu gosto de dizer as coisas sem ser agressivo. Mas não deixo de as dizer. Procurar a fórmula de as dizer é a parte mais difícil. Tocar na ferida sem agressividade.

E qual é a ferida que quer tocar?

Há muitas feridas. Anda muito à volta do que disse aqui, mas com mais definição. As instituições do Douro têm de mudar. As guerras são coisa do passado.

Vai apresentar propostas? O que gostaria de ver concretizado?

Tenho propostas a fazer. Mas não sei se vão ser percebidas. Não é uma mensagem de guerra. Tem de ser uma coisa mesmo a sério. Que toque as bases humanas. Já não há Douro e já não há Gaia. Há o DOC Douro e o vinho do Porto. Já não há esta cidade contra aquela. É o vinho que conta. Se não for assim, não tem hipótese. E isso não se faz facilmente. Tem que ser feito de uma maneira inteligente. E sobretudo com a ajuda da universidade.

Ouça a entrevista completa este domingo ao meio-dia na TSF