Afonso Reis CabralTalvez até seja um amor de músicaSempre que ligo a rádio, ouço uma voz feminina rendilhada que paira sobre um piano ou uma guitarra. Paira também sobre outros instrumentos, nunca abafando a delicadeza: ouçam tamanha voz pequenina.
Afonso Reis CabralConfissão (1.ª de não sei quantas)Na escrita, tantas vezes, eu sei lá onde encontro a beleza.
Afonso Reis CabralPorque gosto de um bom terrorHá ocasiões sociais em que o silêncio é a melhor conversa. E a melhor resposta o refúgio no ecrã do telemóvel, cujo brilho nos dá uma auréola de imbecilidade.
Afonso Reis CabralDizem as férias ao livro "Perdoa-nos: queremos-te muito. Cada vez nos apetece mais estar contigo na duna, na areia, nos alívios do corpo entre o sol e a água. Muito lermos cada recesso teu, muito chegarmos a cada página. Por favor, sê nosso acessório de praia.
Afonso Reis CabralPequenos ícaros Alain de Botton tem aquela aura de intelectual pop que lhe põe numa mão um certo carisma e na outra uma certa desconfiança. Está demasiado encantado consigo mesmo para eu não desconfiar dele. Sinto que pode atraiçoar-me a qualquer momento, já que fatalmente nunca trocaria uma boa frase por uma boa ideia.
Afonso Reis CabralJuntos por um Verão Pateta 2022Agora que passaram uns dias desde que Graça Freitas falou aos comedores de bacalhau à Brás, talvez já tenha havido tempo para ouvirmos a pregação na íntegra.
Afonso Reis CabralCabeças sem grotesco Sempre que penso nas ovelhas da ilha de Wight, e em especial nas cabeças delicadas dos borregos, lembro-me de uma outra cabeça delicada: a de Paula Rego. Mas a partir de agora não penso, porque estava enganado.
Afonso Reis CabralPérola na ostra burocrática Superar burocracias é tanto luta monstruosa contra uma hidra acéfala (existem bichos de sete cabeças sem cabeça), quanto busca encantadora pela alma portuguesa. Essa, que não sabemos o que é, e se se trata de coisa só nossa ou partilhada com todos os outros bichos humanos. Um pouco como o mito à volta da saudade.
Afonso Reis CabralMeu pai não é meu capitãoO meu pai quer a bandeira nacional sobre o caixão mas nunca lha enviariam a tempo do enterro. O formulário do cartão de ex-combatente foi submetido há mais de um ano e ainda não lho mandaram, e um cartão é só um pedaço de pouca consideração enviado pelo correio. Como a bandeira nunca chegaria a tempo, o meu pai comprou-a e apontou-me o sítio onde a guardou: está aqui para quando for preciso.
Afonso Reis CabralEmbalado pelos ciganos Quando vou ao Porto e durmo no quarto que deixou de ser o meu (chamam-lhe hoje o multiusos), fico perdido num pé de dança com a infância. Muito mal dançada, sempre esta ideia dos perdimentos: acontece-me pensar que houve uma época em que vivi de mãos cheias, e desde então as esvaziei. Quase como se a infância feliz tivesse sido fartura que magoa.
Afonso Reis CabralNem música nem máquina Alguém que o salve dele mesmo. Juntamo-nos, tu, eu e mais três - talvez mais quatro ou cinco - para lhe fazermos uma espera: e explicamos-lhe que arte sem obsessão é bolo caseiro, mas arte só com obsessão nem arte é.
Afonso Reis CabralNostalgiado Nuno Markl já não é a única máquina de fazer nostalgia. Acompanham-no todos os retornos do cinema, cuja indústria percebeu que pode colher as notas da classe média nascida nos anos setenta e oitenta. Saudade e nostalgia são agora palavras eruditas para dinheiro.
Afonso Reis CabralSem falar de amor Vi nos anúncios de um jornal que homem este e mulher aquela queriam casar-se daí a tantos dias. Eram brasileiros, publicava o anúncio o consulado em Faro, e se por certo há motivo legal para a publicação dos banhos (era assim que se dizia num outro tempo, não era?), havia naquela fórmula uma esperança, uma música e uma dor.
Afonso Reis CabralPublicamente bibliotecando Ainda não fiz publicidade descarada à Dulce e ao Richard, com os quais nos últimos meses - coisa intimamente pública - tenho partilhado leituras. Até agora, dei-lhes duas mil quatrocentas e oito páginas, eles doaram-me outras quatro mil oitocentas e dezasseis, o mesmo número por cada. São contas por alto, porque não me ocorre calcular quantos muitos milhares de páginas têm eles por baixo das páginas que agora debatemos.
Afonso Reis CabralSegurar a papeira Também eu fiz uma horta: pus-me na terra, eu inteiro no metal da enxada, os dedos onde mais tarde cresceriam as raízes da alface, da beterraba e do tomate. E, como todos, quis fazer lugar poético do logradouro onde fui apanhar natureza durante os confinamentos.
Afonso Reis CabralLegendas para Bucha As imagens que se seguem podem gerar ferimento na sensibilidade do espectador.
Afonso Reis CabralO Fantástico Jardim Zoológico de São VicenteQue tinha eu? Oito anos, um pato-mudo que nunca seria eloquente, um aviário com pássaros incontidos (pesquisem as cores do diamante-de-gould), três porquinhos-da-índia que guinchavam poesia - citavam versos em estrangeiro - e dois coelhos que me olhavam sobranceiros, não sei porquê. E já não tinha as codornizes que um dia levara para o "show and tell" da escola, em que as soltei pelo chão da sala e pelo espanto dos meus amigos, que sabiam lá o que era a comida longe do prato. Já não as tinha porque elas a qualquer perigo se descompunham, perdiam a cabeça. Fácil e simplesmente a perderam quando um gato lhes falou manso e as levou para jantar depois de corridos os pescoços pela guilhotina dos caninos. Ficaram, para eu as encontrar, as cabeças com ar de perdimento.
Afonso Reis CabralPara ti, tudo é gásÉ um clássico da minha infância. Simba, Timon e Pumba estão deitados na relva; anoiteceu e os três comeram como porcos (especialmente o porco, que é um suíno). Perante o firmamento, sublimam-se, pensam para fora de si e para dentro do universo. O cosmos empresta-lhes grandeza.
Afonso Reis CabralClassificação da ansiedade A ansiedade é um voo sem asa. É um desexercício da imaginação que teima em pousar em sítio nenhum. E aí fica, até que a realidade a afugente temporariamente.
Afonso Reis CabralIsto ainda é um homem Até há dois anos, julgávamo-nos protegidos, aninhados no lado de lá da História. Esse lado, que nunca existiu, era só acalmia nas bandas ocidentais do Mundo. Agora que a guerra chegou à Europa, agora que a pata russa esmaga o rouxinol ucraniano, e agora que passámos por uma pandemia e se nos aquece o preço da gasolina, vemos bem que a História nunca deixa de acontecer.
Afonso Reis CabralExercício de respiração O comediante George Carlin, pelo menos o seu alter-ego chamado George Carlin, era um siderado. Um bicho de palco cuja mordidela fazia rir. Espécie de anarquista do humor, contestava a eficácia do voto, atacava os nossos overlords - desconfio que sejam salamandras com QI acima de 145 que não conseguem fazer o nó da gravata -, desprezava os eufemismos como forma de embelezar a realidade, e detestava os centros comerciais.
Afonso Reis CabralEles somos nós A história do cartoon: e agora, o que fazemos? Poesia, esses canalhas não suportam poesia. Os sacanas talvez detestem poesia, os sacanas talvez a adorem, mas eu detesto mais esse cartoon. Enquanto os canalhas canalheiam, nós fazemos poesia ou prosa ou qualquer outro acasalar de palavras. E a guerra acontece.
Afonso Reis CabralO Café da Morte Podia ser o título de um romance de Patrick Modiano, Nobel da Literatura, mas diz-se em inglês e não se passa nas ruas boémias de Paris: Death Café. No Death Café, juntam-se os vivos para constatar que qualquer dia deixam de o ser. Quanto a mim, não é coisa mórbida - é coisa de valorizar a vida.
Afonso Reis CabralA escrita à volta de quê As "Cartas a um jovem poeta", de Rainer Maria Rilke, acompanham-me desde os treze anos. Instado por Vasco Graça Moura, li-as com essa idade em busca da certeza do "sim": Rilke perguntava-me directamente - como directamente perguntara a Kappus, seu destinatário - se eu tinha de escrever.
Afonso Reis CabralMais quentes do que o gelo Se nos descascarmos para lá da tibieza - mais e mais instalada na nossa vida confortável -, ultrapassamos as várias facetas de nós mesmos até regredirmos ao espírito explorador das crianças. Ainda que pequeno e enfezado por falta de luz, aí encontramos o nosso Walter Mitty, sinónimo de espírito aventureiro.