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Olhamos para os incêndios focados no momento dramático e no rasto de destruição que criam, material, físico e palpável. Agudizar esse olhar, considerando a interação dos incêndios com o património, pode ser um passo para avaliar as feridas profundas que ficam no território e nas pessoas que o habitam e utilizam.
Embora o conceito de património seja muitas vezes reduzido ao campo monumental, há muito que este conceito se alargou, incluindo núcleos urbanos e rurais, paisagens e também aquilo que é imaterial, intangível. O Interior do país tem um riquíssimo acervo patrimonial, que abrange estas diversas facetas, não esquecendo que constitui também um património afetivo quer para residentes, quer para emigrantes que voltam todos os anos ao local que lhes é, de alguma forma, "casa". Este território teve originalmente uma organização espacial própria, pautada pela necessidade de defesa de fronteiras e também de adaptação à morfologia (diversa) e às condicionantes meteorológicas e do terreno, nem sempre amigável. Era clara a interligação entre território e património natural e construído; criaram-se ecossistemas.
As mudanças são inevitáveis e, já nos idos anos 60 do século passado, um conhecido arquiteto (Távora, 1962) olhava para o território dividindo-o em zonas em "intenso desenvolvimento" (mais ou menos ordenado), zonas "paralisadas" e zonas "em decadência contínua".
Também no contexto do património natural se verificaram alterações. Num país com diversas espécies autóctones, de árvores e arbustos, onde o carvalho teve (e tem) um lugar de destaque, foram introduzidas mudanças, algumas com propósitos claros e
interligação territorial (castanheiros, cerejeiras), outros com maior impacto sobre o solo e a desertificação (eucalipto).
Voltemos aos incêndios. É do conhecimento geral que o território ardido é significativo; sabemos também que a sua repercussão no Interior do país é ainda mais grave. Tendo o PIR (perigo de incêndio rural) especial incidência nos territórios do Interior, é também primordialmente situada no Interior a área ardida, segundo o ICNF, distribuída por povoamentos, matos e zonas agrícolas.
Este ano a zona de Arganil foi especialmente fustigada. Ali se encontra Piódão, que foi agredido pelo fogo naquela que foi a maior área ardida de sempre em Portugal; zona com riquíssimo património histórico, natural e cultural onde persistem aldeias históricas, sítios arqueológicos, cestaria, olaria; onde espécies vegetais como o vime ou o bracejo - este último tão típico de Sortelha - são afetadas. Devemos incluir a gastronomia - medronho, castanhas, bolotas (tradicionalmente para os porcos, mas agora também recuperadas como elemento da nossa alimentação): em Trancoso a produção de castanha foi muito afetada, no Fundão foi fustigada a produção de cereja.
Os efeitos dos incêndios sulcam os territórios por onde passam, impõem mudanças cruéis que persistem anos depois. O património, aquilo que nos identifica, que nos dá "casa" é significativamente diminuído e esse facto deve estar sempre presente, quer na mitigação de risco, quer na intervenção pós-sinistro.
Neste momento especial, em que novos atores locais refrescam o olhar e a intervenção sobre estes territórios do Interior, são fundamentais a articulação com as políticas nacionais e o uso da ferramenta de "gestão agrupada" interautárquica, focando na mais-valia cultural que é necessário preservar. Criar ecossistemas adaptados ao panorama atual, possivelmente adotando ou indo buscar inspiração a formulações já testadas, é também uma forma de evitar os incêndios. O património (todo ele) agradece. As gerações do futuro também.

