Na passada terça-feira, ao fim da tarde, Margarida Gouveia Fernandes juntou no Salão Nobre do Teatro D. Maria II, em amena tertúlia - moderada por Henrique Monteiro - António Roma Torres, José Manuel dos Santos e eu próprio. Pretendia-se que explorássemos o tema: "Eu sou o outro do outro - identidade e alteridade". Foi o sexto exercício dos "Encontros Garrett", na busca de "pistas para descodificar o futuro". Há múltiplos indícios de crise que não devem escapar à nossa atenção. O desprezo pela privacidade que George Orwell tanto temia. A privação da vida e da liberdade sem garantia de um processo justo. O recuo do direito internacional em face dos imperativos de segurança e das novas modalidades de conflito bélico. A indiferença pelos cadáveres de refugiados e imigrantes que se acumulam no fundo do Mediterrâneo.
Assim, a grande questão que hoje nos confronta é a de saber se a democracia conseguirá sobreviver - enquanto garantia da conciliação improvável da liberdade e da igualdade como direitos universais - àquela "diversidade quase atroz" de que testemunha o narrador fictício da "Lotaria na Babilónia" - o conto admirável de Jorge Luís Borges. Arrasadas as fronteiras pela globalização económica e pelo progresso tecnológico, a diversidade do Mundo entrou-nos pela porta dentro, reduzindo a geografia a relações de vizinhança ou tópico urbanístico, substituindo as fronteiras pela diferença étnica, religiosa ou linguística, sempre associadas às assimetrias económicas e sociais.
Porém, desmentindo os falsos alarmes que recorrentemente anunciam o fim da história, a inevitabilidade do "choque de civilizações", a "guerra nuclear" ou apenas o advento da "pós-modernidade", a verdade é que a Idade Moderna não só não acabou ainda, como até parece conviver, com facilidade, sob a permanente ameaça da sua extinção iminente.
O primeiro empreendimento histórico da era moderna tratou de soltar a humanidade das amarras do tempo e decretou o fim da tradição. A partir daí, o ritmo dos processos de mudança social nunca mais cessou de acelerar. No direito, essa rutura ficou assinalada pela subversão de um princípio fundamental da ordem jurídica do antigo regime: o costume ancestral foi destituído da sua função legitimadora para que a lei nova prevaleça sobre a mais antiga.
No vazio deixado pela tradição, as revoluções liberais dos séculos XVIII e XIX iriam inscrever, como direito universal, um privilégio que fora reservado, exclusivamente, à aristocracia: a liberdade e a igualdade. As democracias constitucionais de hoje, são a expressão dessa garantia e do esforço constante de regulação do equilíbrio instável mas indispensável, entre as duas: liberdade e igualdade não podem subsistir uma sem a outra. Já no círculo restrito da liberdade aristocrática - como prerrogativa de "pares" - a conciliação da liberdade com a igualdade careceu de variados instrumentos de moderação tais como as regras de sucessão dinástica ou a instituição dos "morgadios", com resultados sofríveis e violações frequentes.
Mais tarde, a sua universalização - como direito - também não se faria, de início, sem drásticas reduções de natureza económica e cultural, mas não dispensou a ficção de uma sociedade homogénea - a pátria, a nação - concebida segundo a imagem que a nova burguesia ilustrada construíra de si mesma. O "voto censitário" foi o primeiro exemplo histórico dessa engenhosa fábula mas era fatal que, a breve prazo, o sufrágio universal viesse a triunfar e assim aconteceu.
John Rawls - na esteira de Hannah Arendt, Bertrand Russel, Emmanuel Kant e tantos outros - sintetizou o problema desta maneira: "à luz de que princípios e ideais devemos exercer o poder" se ele carece de justificação perante outros seres "livres e iguais"?
