<p>Doutor em Estudos Judaicos pela Universidade de Colónia, Carsten L. Wilke é actualmente investigador no Instituto Steinheim de História Judaica Alemã, em Duisburg, e um dos maiores investigadores estrangeiros da diáspora dos judeus portugueses, exaltando o seu contributo ímpar, mais do que para o próprio Judaísmo, para o advento da Modernidade na Europa. </p>
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Qual é a especificidade do judaísmo português, conhecido por marranismo? Em que consiste e como surgiu?
A história judaica tomou, em Portugal, um rumo completamente diferente da dos outros países, o que se deveu à decisão do rei Manuel I. Em 1497, toda a população judaica do país foi forçada ao baptismo e a comportar-se publicamente como cristã. Enquanto não houve Inquisição em Portugal, foi possível aos Judeus baptizados, os "cristãos-novos", manter em privado grande parte do ritual Judaico. No entanto, a partir de 1536, todas as práticas Judaicas eram susceptíveis de serem espiadas e reportadas aos tribunais inquisitoriais, com consequências medonhas. Mesmo entre os mais religiosos, o rito judaico foi reduzido à observância de algumas leis dietéticas, do sabbaths ocasional e de certos dias festivos no núcleo familiar mais restrito. Muitos descendentes dos judeus conversos de 1497 não mantiveram quaisquer tradições judaicas. Todavia, após três ou quatro gerações de assimilação na sociedade Católica, deu-se uma espécie de milagre: partes do grupo beneficiaram de um contexto económico favorável, emigraram e voltaram ao Judaísmo fora de Portugal. Assim, a história Judaica Portuguesa divide-se em três épocas distintas: o "tempo dos judeus" na Idade Média; a vida como "cristãos-novos", judaizante ou não; e, finalmente, para alguns dos descendentes, a reconversão à vida judaica pública na diáspora.
Para rotular o cripto-Judaísmo da fase intermédia, os historiadores criaram o termo marranismo, que deriva da palavra marrano (porco), que na Castela Medieval constituía um grave insulto aos Judeu-conversos. Tal como Papismo ou Maometismo, Marranismo deriva da linguagem hostil, mas é útil porque o cripto-Judaísmo não era só o Judaísmo mantido no segredo, mas tornou-se também, de algum modo, numa religião em si mesmo. O conhecimento e a prática foram, obviamente, empobrecidos pelo secretismo da transmissão, mas também foram enriquecidos com tradições, mensagens e interpretações originais. As gerações seguintes reconstruiram a religião ancestral a partir de livros, rumores ou da mera imaginação.
Há que ter a noção, porém, de que os cripto-Judeus afirmam que praticam o Judaísmo e não uma religião diferente chamada marranismo. É isto que torna o marranismo ambivalente: nem é completamente dependente da tradição normativa Judaica nem completamente independente dela.
Como foi possível ter sobrevivido pelo menos até ao Holocausto? Em Portugal, ainda perdura?
A Inquisição, ao forçar muitos cristãos-novos a fugir de Portugal, acabou por ser, ironicamente, responsável pelo facto de o Marranismo Português reviver no estrangeiro e pela circunstância de muitos refugiados terem, até, formado comunidades judaicas altamente desenvolvidas. No século XVI, estes cristãos-novos orientaram-se principalmente para o Mediterrâneo Oriental, e no século XVII para os portos marítimos do Atlântico e as colónias do Novo Mundo. Era, obviamente, muito mais difícil transmitir as tradições judaicas dentro de Portugal. Após o zénite da actividade Inquisitorial por volta de 1670, só restaram comunidades isoladas no Alto Alentejo, Beira Alta e Trás-os-Montes. Não tinham hipótese de confessarem publicamente o seu Judaísmo mesmo depois de a Inquisição ter sido abolida em 1821, porquanto que a lei da monarquia Portuguesa punia os Católicos que abandonavam a Igreja. Só na atmosfera liberal da Primeira República, depois de a Igreja e o Estado terem sido separados em 1911, é que os marranos no Porto, Bragança e Covilhã estabeleceram comunidades judaicas regulares. A pressão política durante a ditadura, as tendências modernizantes e a emigração desempenharam um papel no desaparecimento destas tradições, mas a comunidade de Belmonte é a prova de que foram capazes de sobreviver até hoje aos nossos dias em circunstâncias excepcionais. A grande maioria dos descendentes dos Judeus baptizados em 1497 foi assimilada pela população Católica e os seus genes, se não até o seu espírito, sobrevivem hoje em dia nos portugueses.
Embora perseguidos pela Igreja Católica - designadamente através da Inquição - e pelos monarcas europeus, a diáspora dos judeus portugueses chegou a dominar o comércio internacional. Como é que alcançou tal poder?
Não exageremos: a diáspora Judaica Portuguesa não dominou o comércio internacional. Nem inventou o capitalismo moderno nem provocou a mudança do poder económico do Sul para o Norte da Europa, como alguns defenderam. Mesmo nos seus momentos mais gloriosos no século XVII, a "nação portuguesa", a corporação mercantil Portuguesa, era apenas uma das quatro ou cinco grande redes comerciais da época, e certamente menos influente do que as suas congéneres Holandesas ou Britânicas. Todavia, o seu impacto específico durante os primórdios época moderna foi sentido em certas alturas e em determinados sectores do comércio em mutação, mais agudamente nas exportações do açúcar brasileiro no início do século XVII. Se os "cristãos-novos" portugueses puderam reagir flexivelmente à conjuntura, foi principalmente por causa da estrutura da sua diáspora criada pela perseguição. Ao serem discriminados pelos estutos da "pureza de sangue" em Portugal e estarem sob a ameaça constante de prisão e arresto de bens, os "cristãos-novos" estavam impedidos de investir no percurso normal dos mercadores de sucesso do início da Modernidade, que tantaram, sem excepção, deixar os negócios para investir em terras, títulos e cargos públicos. Graças à Inquisição, quantidades massivas de gente e de capital foram expulsos de Portugal e injectados no comércio Europeu e colonial. E as potências Europeias eram menos reluctantes em receber e proteger estes mercadores do que se possa pensar. A República Holandesa, durante a sua guerra com Espanha, preferiu receber no seu território Judeus do que mercadores Católicos dos países Ibéricos. Em França, os previlégios dos "mercadores Portugueses" visavam apenas os "cristãos-novos". Este não foi o único caso em que a intolerância religiosa estimulou os perseguidos a desenvolverem capacidades e sucessos económicos: também os Calvinistas Flamengos, os Huguenotes e os Quakers formaram as suas diásporas mercantis porque tiveram de migrar. Os autores Judeus da época interpretaram como obra da Providência Divina que o seu sofrimento e expulsão pela Inquisição tenham sido recompensados não só com a estabilização religiosa, mas também económica.
Os historiadores hesitam em avaliar as atitudes de D. João II e de D. Manuel I face aos judeus. Por que é que aqueles reis os reprimiram, se os judeus lhes prestavam tão bons serviços? E terá sido mais cruel expulsar os judeus, como fez D. João II, ou obrigá-los a violentarem as suas convicções e renegarem a sua religião para sobreviver, como fez D. Manuel I?
A protecção medieval dos Judeus foi sempre motivada pelo interesse dos governantes. Embora os monarcas portugueses tenham concedido títulos nobiliárquicos aos seus agentes Judeus, nunca deixaram de lhes impor impostos pesadíssimos. Só que a actividade económica dos Judeus foi relativamente mais importante em Portugal do que em Espanha; e quando D. Manuel I sofreu a pressão anti-Judaica das Cortes e dos reis espanhóis, recorreu à conversão em massa em vez da expulsão. D. João II não tinha qualquer política nem de expulsão nem de conversão dos Judeus. Algumas das suas medidas mais duras devem-se ao facto de ter garantido, à maior parte dos Judeus exilados de Castela, apenas uma estadia temporária. Não devíamos comparar o seu governo com a conversão forçada dos Portugueses de 1497, mas sim com a expulsão Espanhola de 1492. Nesta comparação, as medidas de D. Manuel foram muito mais cruéis do ponto de vista da fé dos Judeus - e sabemos como era importante, nos tempos medievais e primórdios da Modernidade, a fé religiosa para a identidade pessoal. O baptismo forçado foi tão catástrófico que os historiadores portugueses descreveram-no como "religicídio" ou "etnicídio", no sentido em que poupou a vida das vítimas enquanto lhes apagava a personalidade colectiva. Não obstante, houve sempre (mesmo para os medievos) o aspecto da segurança física, ascensão social e êxito económico: deste ponto de vista, ser um converso forçado no Portugal exultante de Vasco da Gama prometia grandes honras e benefícios. A perspectiva dos historiadores devia tomar em consideração a colisão de ambas as aspirações. Durante séculos, nem os Velhos nem os Cristão Novos aceitaram a mistura de populações que D. Manuel I tentou impor na sociedade portuguesa, mas os Cristãos Novos integrados à força acabaram por se tornar a espinha dorsal do comércio colonial português. Esta trágica contradição provocou o massacre de Lisboa de 1506 e resultou no conflito social que vitimou os "cristãos-novos" sobreviventes.
Os judeus foram sempre vítimas de extorsão, tanto por parte da Igreja, nomeadamente através da Inquisição, como da coroa, que os via como uma espécie de recurso financeiro. De onde vinha a ideia que os judeus eram sempre ricos? Eram?
A ideia de que os Judeus são propensos à acumulação de riquezas remonta ao antigo estereótipo da teologia Cristã, que atribui aos Cristãos a aspiração à felicidade eterna do espírito, e aos Judeus o desejo material por um messias político. Quando surgiu na Antiguidade, esta construção não tinha qualquer base na vida económica: a maioria dos Judeus de então era camponesa e a maioria dos Cristãos habitava nas cidades. Mas funcionou como profecia auto-justificativa e criou a sua própria realidade nos tempos medievais, quando os Judeus foram expulsos da agricultura e do comércio e ficaram limitados à finança. Em Espanha e em Portugal, a actividade económica dos Judeus era muito menos restringida do que no resto da Europa, mas, mesmo assim, os Judeus eram tolerados principalmente como fonte de receitas fiscais. Isso significa que, para sobreviver, tiveram de adquirir dinheiro em vez de terra ou estatuto social. Mais do que uma vez na sua história peninsular, especialmente durante a Inquisição, os Judeus e os cripto-Judeus deveram a sua sobrevivência económica ao investimento em bens comerciais, na educação, e nas redes familiares.
A Holanda é encarada como país liberal que acolheu de bom grado os judeus, beneficiando com eles. Esse acolhimento foi assim tão pacífico?
Na memória colectiva dos Judeus Portugueses de Amesterdão, a generosidade holandesa é apresentada nos termos mais entusiásticos. De acordo com a tradição, um serviço religioso judaico secreto ministrado pelos primeiros imigrantes portugueses terá sido interrompido pelos soldados municipais, pela suspeitava de que aqueles Ibéricos celebravam uma missa católica. Quando o burgomestre clarificou a confusão, garantiram imediatamente a liberdade de culto aos Judeus recém-chegados e pediram-lhes para rezarem pela bonança da cidade. Esta benção, em língua portuguesa, continua a integrar a liturgia da sinagoga de Amesterdão. A lenda foi desmentida, porém, pelas evidências históricas: durante 20 anos, a autoridade municipal de Amesterdão era tão relutante como o Senado de Hamburgo ou o rei de França em aceitar a celebração pública Judaica. Quando a tolerância foi garantida em 1616, ainda houve oposição entre o clero Calvinista, e os Judeus foram excluídos das guildas e outras actividades económicas. Mas foram considerados súbditos dos Estados Holandeses (e não apenas estrangeiros tolerados, como eram os Judeus em toda a parte), e a sua liberdade religiosa, assim como a segurança física, permaneceram intocáveis durante três séculos até à invasão alemã de 1940. No contexto do século XVIII, quando a unidade religiosa era considerada o objectivo político supremo tanto nos países Católicos como Protestantes, a tolerância holandesa era de facto excepcional e louvável. Este é o núcleo de verdade na lenda.
Qual foi a comunidade mais próspera da diáspora portuguesa? Onde se encontrava e a que se deve o seu êxito?
No século XVI, as exportações de especiarias a partir de Lisboa tornou a comunidade mercantil portuguesa de Antuérpia florescente. Ao mesmo tempo, os emigrantes judeus portugueses formaram comunidades prósperas em Constantinopla e Salónica depois de terem importado tecnologia europeia da manufactura têxtil para o Império Otomano. No início do século XVII, a ascensão da comunidade judaica portuguesa de Amesterdão atraiu o comércio do açúcar do Brasil, assim como o comércio com prata e lã de Espanha, onde os Cristão Novos formaram importantes colónias mercantis. Nos séculos XVIII e XIX, por altura da expansão colonial Britânica e Francesa, as comunidades de judeus portugueses mais dinâmicas eram as de Londres e de Bordéus, enquanto que a de Livorno construia o seu próprio império comercial no Mediterrâneo. As redes comerciais incluiam comunidades filiais estabelecidas nas Caraíbas e na América do Norte Britânica.
Qual foi o legado maior dessa diáspora judaica portuguesa?
A diáspora Portuguesa levou a presença judaica de volta a França, aos Países Baixos e a Inglaterra, de onde havia sido expulsa na Idade Média. O seu grande feito foi a invenção de uma síntese cultural moderna que traduziu o Judaísmo para as línguas e imaginário cultural Europeus. Os judeus da antiga Alexandria traduziram para o Grego o universo de tradições e conceitos Judaicos, e os Judeus da Córdova medieval para o Árabe: os Judeus dos primórdios da Amesterdão moderna fizeram o mesmo em Espanhol e em Português. Além disso, tenho a impressão de que o legado da diáspora portuguesa pode ser descoberto também a partir de uma perspectiva Europeia. A partir do momento crítico de um violento cisma dentro da Cristandade, no meio de guerras e hostilidades, os mercadores, intelectuais e diplomatas Judeus de Portugal, fizeram muito por manter as trocas entre o Norte Protestante e o Sul Católico e para manter a integridade cultural da Europa.